Posted: domingo, 25 de novembro de 2012 by Rupert A. F. Storm in
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Acordei desanimado naquela manhã de 6 de junho de 2018. Fazia exatamente um ano que Brittany e Timothy haviam morrido na explosão que causei e já fazia um tempo que não pensava nos dois ou no que aconteceu, mas tudo voltou como um flash no instante em que abri os olhos. Naquele momento soube que seria um péssimo dia.

Minhas memórias daquele 1º aniversário da morte deles são um pouco confusas. O que lembro com clareza é que tinha uma consulta com o Dr. Pace naquela manhã, mas não apareci em seu consultório. Sabia exatamente o que ele diria e não queria ouvir. Lembro também de ter ignorado uma dezena de ligações durante o dia. E principalmente, lembro-me de ter ido até o cemitério onde os dois estavam enterrados.

James estava lá quando cheguei, ajoelhado ao lado do tumulo de Brittany com uma aparência pior que a minha. Segurava um buque de flores com tanta força nas mãos que por um instante achei que fosse esmaga-las, mas as depositou diante da lápide quando me viu e ficou de pé.

- Gérberas eram as favoritas dela – disse suspirando – Nunca dei uma única flor delas a ela, com medo de que tivesse a impressão errada. E agora trago um buque inteiro.
- Sinto muito – foi tudo que consegui dizer enquanto apertava seu ombro.
- Não esperava vê-lo aqui.
- Para falar a verdade, nem eu. Não havia percebido para onde ia até ver a entrada do cemitério.
- Ainda se sente culpado? – ele perguntou e quando não respondi, sacudiu a cabeça – Cara, você precisa parar com isso. Não foi sua culpa, você salvou muita gente.
- Eu sei, não é culpa o que sinto. Não sei explicar o que é e isso me deprime, sou um escritor – ele riu um pouco, mais relaxado – Só achei que devia vir aqui, por respeito, entende? – e ele assentiu.
- Tínhamos tantos planos, sabe? – James sentou no chão outra vez e sentei ao seu lado – Britt ia cursar direito em Cambridge e me fez prometer acompanha-la. Eu nunca nem quis ser advogado, concordei só para fazê-la parar de encher o meu saco.
- Você agora está cumprindo a promessa, não é? – perguntei e ele assentiu.
- Foi a primeira coisa que fiz quando voltei de Hogwarts. Consegui uma bolsa e tenho conciliado a academia com as aulas.
- Como você faz pra assistir a elas? Não ficou o primeiro mês preso no quartel?
- Eu não assisto às aulas na universidade, faço a distancia. Eles me mandam o material, eu estudo e faço todos os trabalhos sozinhos e só vou até lá fazer as provas. E muitas matérias eu já tenho na academia, então pude cortar uma boa parte da grade. Posso assistir às aulas quando quero e sempre que tenho tempo faço isso, mas é muito raro.
- Deve ser exaustivo.
- É, mas é o mesmo sentimento que você não consegue explicar. Britt sempre me incentivou a fazer isso dizendo que ia me ajudar com a carreira na policia. É como se eu devesse isso a ela, sabe?

Eu sabia exatamente o que ele queria dizer. Não era justamente por sentir que devia algo a eles que eu estava ali? Ficamos um tempo em silencio sentados na grama, depois caminhamos até a lápide de Timothy e James contou algumas histórias que me ajudaram a conhecer outro lado do garoto que me atormentou por tanto tempo. Nós nunca seriamos amigos, mas ouvindo a forma com que James falava dele, soube que não era uma má pessoa.

Deixamos o cemitério quando vimos os pais de Timothy se aproximando. Meu primeiro impulso seria falar com eles, embora não soubesse o que poderia dizer, mas James me puxou pelo braço na direção contrária. Ele tinha razão, era melhor não ir até eles. Se não tínhamos nada de útil para dizer, e nada que você diga aos pais que perderam seu filho no 1º aniversário da morte dele será útil, era melhor calar a boca e se retirar.

Não me lembro de quem foi a ideia, mas do cemitério fomos direto para um pub que ficava no bairro vizinho. Ainda eram 11h da manhã quando entramos e com identidades alteradas com magia, pedimos duas doses de tequila. Lembro-me de, ainda sentados no balcão, termos pedido mais duas rodadas. E depois disso tudo é um grande borrão.

Minha próxima lembrança é de acordar em um lugar que não reconheci de imediato. Estava em uma cama, disso eu tinha certeza, mas onde era aquilo? Olhei em volta confuso e reconheci a decoração como sendo o antigo quarto de Connor, no apartamento que dividia com Nick. O que eu estava fazendo ali?

- Ah, bom dia, Kurt Cobain – ouvi a voz de Nick vindo de algum lugar em minha mente e virei a cabeça rápido demais. Achei que ia morrer.
- Nick. O que houve? – olhei para o lado, dessa vez movendo a cabeça devagar – James, onde ele está?
- Ele acordou há meia hora, vomitou no chão da minha sala e saiu apressado de volta pro quartel. Já deve estar levando a punição do século por ter perdido um dia inteiro de aula.
- Um dia inteiro...?
- Hoje é dia 7.
- O que aconteceu com o dia 6? – eu estava muito confuso, meu cérebro não conseguia funcionar.
- O que aconteceu foi que vocês beberam até não poder mais e eu os resgatei do bar – devia estar com cara de interrogação, porque ele continuou – Quando Amber viu que James desapareceu e você não atendia suas ligações, deduziu que algo estava errado e que tinha relação com o que o dia de ontem representa a vocês dois, então me ligou. Rastreei seu celular e encontrei vocês quase desmaiados no balcão, de tão bêbados que estavam.
- Droga, ela deve estar uma fera.
- Acho que ela vai ser mais compreensiva do que pensa, estava preocupada quando me ligou, mas não aconselho a ignorar as ligações da sua namorada outra vez, por mais depressivo que esteja.
- Eu não estava depressivo. Não planejei nada disso.
- Acredito em você, mas não torne isso uma tradição, ok? Outros dias 6 de junho virão e não quero ter que busca-lo em um bar todo vez – e assenti, o que fez com que minha cabeça rodasse.
- E o que houve com você? Está com uma cara péssima.
- Ouvir isso do cara descabelado com olheiras de panda e de ressaca é deprimente – ele sacudiu a cabeça rindo, mas sabia que algo estava errado.
- O que aconteceu? – insisti e sentei na cama tentando me orientar.
- Só estou cansado.
- Cansado de alguma coisa especifica ou...?
- Cansado de tudo, na verdade. Fizemos show essa semana, cheguei em casa quase 2h da manhã e antes das 6h tive que levantar e correr para a delegacia. Não aguento mais essa jornada dupla, não sei por mais quanto tempo consigo manter essa vida.
- Está pensando em desistir de um dos dois? – perguntei e me surpreendi quando ele assentiu – Não achei que um dia fosse ouvir isso. Vai desistir de ser detetive? – quando ele não respondeu, fiquei ainda mais surpreso – Vai largar a banda??
- Não sei, Rup. Esse é o problema. Eu não sei o que fazer. Minha única certeza é que não aguento mais ser um músico e um detetive ao mesmo tempo. Eu preciso escolher, mas não sei qual.
- Bom, acho que o simples fato de você estar em dúvida já diz qual você não quer abandonar. Você sempre quis ser músico, seu pai teve que lutar para convencê-lo a entrar para a academia de auror. Se hoje você está hesitando entre ficar com o que sempre quis ser e o que nunca pensou em ser, é porque alguma coisa mudou.
- Ok Dr. Pace, chega de forçar o cérebro por hoje – disse quando apertei a testa com uma cara sofrida – Gabriel ligou para o seu celular há uma hora e atendi. Disse que tinha uma reunião ao 12h, mas expliquei você não tinha condição de tomar decisões inteligentes tão cedo assim e ele conseguiu empurrar para às 16h. Disse que é melhor aparecer na editora, sóbrio ou não, então vou leva-lo em casa e ser sua babá por hoje, me certificar de que vai chegar à Black Pawn na hora certa.
- E o seu trabalho?
- Hoje é a minha folga. Por que acha que estou tendo tempo de pensar?

Assenti sem conseguir formar mais nenhuma sentença coerente e levantei da cama, deixando que ele me dissesse o que fazer e para onde ir. Já havia exercitado demais o cérebro naquela manhã, precisava poupá-lo para o que quer que me estivesse me esperando na reunião. Nick tinha razão, eu não podia deixar que isso virasse uma tradição.

Infelizmente, aquilo seria uma tradição pelos próximos cinco anos.

Posted: terça-feira, 20 de novembro de 2012 by Clara Storm Lupin in
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Março de 2018


Não sei exatamente onde estava com a cabeça quando decidir me tornar uma Curandeira, mas sem dúvida não estava com o juízo perfeito. Os primeiros meses foram motivadores, mas depois de seis meses vieram os primeiros plantões de 48 horas e o animo já não era mais o mesmo. E como se já não fosse estressante o bastante passar mais de 24 horas sem dormir direito tentando não matar seus pacientes, ainda tínhamos mamãe e tia Mirian rondando o hospital dia e noite supervisionando cada respiração nossa. Se você acha que ter sua mãe e sua tia como chefes é algum beneficio, pense outra vez. Justin, JJ e eu éramos cobrados em dobro.

Os plantões sem fim eram exaustivos e sempre chegava em casa reclamando, mas ainda não havia desistido da idéia de estudar medicina trouxa em Oxford. O envelope com a ficha de inscrição já estava em minhas mãos havia algumas semanas e tinha finalmente terminado a redação que eles pedem para nos avaliar. Estava aproveitando um momento raro de descanso para terminar de organizar tudo e colocar no correio quando bateram na porta da sala de descanso. Quando vi a cabeça do Dr. Cooper aparecer, sabia que a folga havia acabado.

- Explosão de caldeirão na maca cinco esperando por você – ele atirou a ficha para cima de mim.

Levantei do sofá sem muita pressa, mas quando bati o olho no nome do paciente na prancheta, disparei porta afora. Sheldon estava deitado na maca como se estivesse morrendo, pressionando um pedaço de pano contra a testa. O pano já estava ensopado de sangue e metade de seu rosto estava vermelho. Era uma cena pavorosa.

- Sheldon! O que aconteceu com você?
- Eu estava fazendo um experimento que não deu muito certo.
- Você não explodiu o apartamento, não é?
- Não, consegui carregar o caldeirão até o elevador antes de explodir. A propósito, nosso prédio não tem mais lavanderia.
- Pelo menos você está inteiro. Deixe ver o ferimento – estiquei a mão para tirar o pano de sua testa e ele saltou da maca.
- Quero um Curandeiro de verdade.
- A menos que o paciente esteja morrendo são os alunos que atendem, então deita ai e fica quieto – o empurrei de volta na maca com força.
- Você ao menos sabe o que está fazendo? – disse se esquivando quando puxei o pano ensangüentado.
- Se não parar de se mexer vou chamar um enfermeiro para amarrá-lo na maca – disse séria e ele me olhou desafiador, mas deve ter percebido que não estava brincando e sossegou – Isso é um pedaço de plástico? – disse tirando um objeto esquisito de sua testa – O que você estava cozinhando?
- Você não vai querer saber.
- Tem razão, às vezes a ignorância é uma bênção. Fique quieto um instante que já volto.

Deixei Sheldon sozinho na maca por alguns minutos enquanto pegava uma poção anestesiante e o kit para limpar o corte e fechá-lo. Era nessas horas que me sentia mais ansiosa por começar os estudos trouxas da medicina. Bruxos não usavam agulha para costumar pacientes, manter o corte na testa de Sheldon estável o suficiente para fechar sem a ajuda de um ponto não era uma tarefa simples.

- Beba isso – entreguei um frasco de poção a ele – Vai deixá-lo anestesiado.
- Você fez essa poção? – perguntou desconfiado – De onde ela veio?
- Não, Sheldon, as poções usadas no St. Mungus vêm da loja do professor Yoshi. Beba isso logo, não posso limpar esse buraco na sua testa com você sentindo dor.
- O que você vai fazer com o corte?
- Vou retirar todos os objetos estranhos que possam ter entrado nele na explosão e fazer o sangue estancar antes de fazer o curativo. Como você já sabe, não temos autorização para costurar pacientes, então terá que colaborar e seguir todas as instruções. Agora beba a poção. Vai se sentir um pouco estranho, mas não vai sentir dor quando começar a mexer em sua testa.

Sheldon ainda hesitou por um instante, mas se deu por vencido e bebeu a poção. O efeito dela começou a aparecer dois minutos depois. Quando Sheldon colocou a língua para fora e a apertou, dizendo que não doía, sabia que já estava mais que dopado. Aquela era uma das poções mais fortes que Hiro fornecia ao hospital, era mais eficaz para deixar a pessoa desorientada que algumas doses de tequila. Logo, foi muito difícil manter a pose série enquanto fazia meu trabalho.

- Eu não gostava de você, Clara – Sheldon falou depois de cansar de mexer na orelha – Você é chata, intrometida, mandona...
- Tem algum “mas” vindo? Não esqueça que estou segurando objetos cortantes perto da sua cabeça.
- Mas... – ele fez uma entonação dramática e segurei o riso – Aprendi a me adaptar. Você faz bem ao Hiro e ele traz um pouco de cultura a sua cabeça oca.
- Obrigada, eu acho.
- Por favor, não magoe meu amigo.
- Não pretendo magoar ele.
- Ótimo. Posso contar um segredo? – ele diminuiu o tom de voz e fez sinal para que me aproximasse. Já estava querendo rir, mas ainda consegui me segurar.
- Claro, o que é?
- I’m Batman! – disse imitando a voz do Batman e dessa vez não consegui não rir – Posso contar outro segredo?
- Claro, Sheldon. Minha boca é um túmulo.
- Mamãe fuma no carro. Jesus não liga, mas não conte para o papai. Não esse segredo, o outro segredo... I’m Batman!

Sheldon começou a citar falas dos filmes e aproveitei essa distração para terminar o que estava fazendo. Ele já começava a cantar o hino da Inglaterra quando passei o ultimo pedaço de esparadrapo no curativo e tirei a luva. Ele parou de falar um instante, tocou a bandagem na cabeça e fez sinal de positivo, esquecendo completamente que minutos atrás estava questionando minha habilidade de fazer um curativo.

- Ok Sheldon, espere aqui até o Dr. Cooper lhe dar alta, tudo bem? – falei bem devagar para ele não perder nenhuma informação – Não saia da maca. Isso é importante, Sheldon, está prestando atenção?
- Sim, ficar na maca. Não sair. Dr. Cooper vai me dar alta – ele estendeu a mão e a olhou fascinado – Isso parece azul pra você?
- Não, você ainda não está virando um Avatar. Já volto.

Não podia deixar Sheldon ir embora sozinho, sabe Merlin onde ele ia parar naquele estado, alguém tinha que leva-lo para casa. Liguei para Hiro para checar se ele podia vir busca-lo, mas ele estava atolado na loja e não poderia sair antes das 20h, não adiantava nada. JJ não sairia antes das 2h da manhã hoje, então acabei ficando com o abacaxi. Meu plantão terminava em uma hora, ele sobreviveria até lá. Dr. Cooper avaliou o que tinha feito e o liberou de imediato, mas expliquei que ele era meu vizinho e o levaria para casa mais tarde e ele autorizou que ele ficasse na maca até que eu saísse.

Às 18h em ponto encerrei meu plantão e fui até onde havia deixado Sheldon para resgatá-lo. Ele ainda estava em uma alucinação absurda de que suas mãos estavam ficando azuis e o reboquei ainda falando sobre o assunto até a área de aparatação. Eu costumava pegar o metrô para ir embora, ver um pouco de gente que não sejam doentes, mas não ia me arriscar a sair com ele naquele estado em um transporte publico lotado. O que foi um erro, evidentemente. Ainda sob o efeito do sedativo, assim que aparatamos no corredor dos apartamentos, Sheldon teve quase uma convulsão e vomitou toda a poção no meu pé. Se não tivesse segurando firme seu braço na hora que desaparatamos, teria desabado no chão.

O lado positivo de ter vomitado? O efeito da poção passou e Sheldon não estava mais parecendo um maconheiro. O lado negativo? Ele agora estava passando mal e eu fiquei de enfermeira a noite inteira. Todo mundo diz que homens são molengas quando ficam doentes e viram bebês, mas chamar o que Sheldon vira de bebê não seria apropriado. Ele vira a pessoa mais insuportável do mundo. Mais complicado que cuidar de uma criança doente ou um velho realmente teimoso, consegui com muito custo que ele tomasse banho (tive que encher a banheira antes e colocar a água na temperatura certa!) e colocar o pijama para deitar. Eu não sabia cozinhar, então graças a Merlin existem sopa semi-pronta, mas ainda assim tive que ouvi-lo reclamar que não estava boa, mesmo engolindo tudo. Quando Hiro chegou, já quase 22h, eu estava cantando sentada na beira de sua cama com a cara mais enfezada do mundo.

- Onde você estava? Disse que ia sair às 20h! – perguntei irritada. Não tinha a menor vocação para ser babá.
- Recebi material hoje, estava fazendo o estoque até agora pouco – ele respondeu na defensiva – Eu disse que estava enrolado!
- Podia ao menos ter ligado, não é? Estou duas horas a mais do que contei aqui!
- Não briguem! – Sheldon se encolheu na cama com as mãos tapando os ouvidos.
- Não estamos brigando, Sheldon – Hiro respondeu cansado – Só discordando.
- Já ouvi isso antes. E em seguida eu tinha que me esconder em meu quarto recitando uma palestra de Richard Feynman, enquanto minha mão gritava que Jesus a perdoaria se ela pusesse vidro no bolo de carne do papai. E meu pai está no telhado atirando na coleção dela de pratos colecionáveis de Franklin Mint.
- Não estamos brigando, vê? – levantei da cama e abracei Hiro, dando um beijo rápido nele – Ninguém vai mais gritar, nem quebrar nada.
- Então por que ainda estão com expressões zangadas?
- Ok Sheldon, você teve problemas na infância, todos nós temos nossos traumas. Cresça e supere isso! – Hiro falou impaciente e o empurrei.
- Posso resolver isso? – perguntei reprimindo a fúria e sentei na cama outra vez – Sheldon, tente entender, por favor. Hiro e eu estamos em um relacionamento e ocasionalmente nós vamos brigar. Mas não importa o que aconteça entre nós, você vai ser sempre parte das nossas vidas. Certo, Hiro?
- Sempre é muito tempo – olhei para ele séria e ele assentiu – Claro. Sempre.
- Agora você precisa dormir. Vai acordar se sentindo melhor amanha, prometo.

Saímos do quarto e apaguei a luz antes de puxar a porta, deixando Sheldon finalmente quieto e, espero, dormindo. Hiro me puxou para um abraço quando já estávamos no corredor e não resisti, deixei que ele me envolvesse com seus braços.

- Desculpe, eu devia ter ligado.
- Tudo bem, eu exagerei um pouco, cuidar dele pode ser muito estressante.
- Pode ser? – ele ergueu a sobrancelha e ri.
- Ok, é muito estressante – admiti e ele beijou minha testa – Ele é nosso filho, não é?
- Bom, você estava cantando para ele quando cheguei, acho que isso acabou com qualquer chance de negar.
- Eu sabia que ter filhos era uma péssima ideia – falei suspirando e ele riu.
- Já que nosso primogênito finalmente dormiu, que tal praticar alguns irmãos?
- Contanto que a gente fique só na prática, mostre o caminho.

Ele sorriu maroto e me beijou com vontade antes de me puxar pela mão na direção de seu quarto.

°°°°°°°°°°°

O evento mais esperado pela família Storm aconteceu no final de março. Becky estava deslumbrante em um vestido cor pérola com detalhes de rosas quando entrou na igreja de braço dado com tio George, a felicidade estampada no enorme sorriso que tinha no rosto. Connor estava nervoso perto de nós no altar. Balançava-se para frente e para trás angustiado para que ela chegasse logo. Do meu lado, Rupert não parava de olhar para Amber sentada com os outros convidados. Ele tentava não olhar, mas não conseguia. Meu primo era do tipo que queria estar ali um dia e todo mundo sabia que ele esperava que Amber fosse quem viesse ao seu encontro no altar.

A cerimonia foi curta, simples e bonita. Do lado de Connor, seu irmão Micah e sua esposa Evie e Nick e Kaley formavam os dois casais de padrinhos. E do lado de Becky, eram Rupert e eu e Ethan e Brianna. O padre era jovem e muito descontraído, fazia perguntas do tipo “Você tem mesmo certeza que quer se casar com ele? Ele vai ficar gordo e careca quando envelhecer” para Becky e “Ela não vai ter sempre esse corpinho elegante, então pense bem!” para Connor, o que arrancava risadas de todo mundo e aliviava um pouco a tensão de ambos, que só faltavam cortar a circulação um do outro tamanha era a força com que apertavam as mãos.

Se a cerimonia foi boa, a festa foi sem explicação. Mais uma vez mamãe assumiu o controle das coisas e, junto das mães de Connor e Nigel e Otter, organizaram uma recepção para ninguém botar defeito. E na hora da primeira dança já casados... Bem, essa parte vamos dizer que mamãe não teve qualquer envolvimento. Ela foi contra, a principio. Não queria fugir do tradicional, mas Connor acabou convencendo-a de que seria diferente e divertido e ela cedeu.

Os dois caminharam de mãos dadas para o centro da pista ao som de Just the way you are, do Bruno Mars, o que já não era uma música clássica de casamento, mas era uma versão mais lenta e estava tudo normal. Dançaram um pouco de rosto colado e de repente a música mudou. Começou a tocar Party Rock Anthem e os dois embarcaram em uma coreografia insana da música. Quando já estava todo mundo aplaudindo animado, todos os padrinhos e mais alguns amigos que toparam entrar na brincadeira entraram na pista e a primeira dança deles virou um flash mod. Eu tinha certeza que quando aquele vídeo fosse parar na internet e se transformasse em um viral eu me arrependeria de ter topado participar, mas na hora foi bem divertido.

Quando nada de mais impactante poderia acontecer, Connor provou que sabia como surpreender. Em segredo, com a ajuda de Nick, Nigel, Otter, Ethan, Brian e Edward, preparou um numero para Becky. Era tudo uma grande piada, é claro. Connor escolheu uma música de uma boyband que Becky era apaixonada quando tinha 15 anos e os sete bolaram uma coreografia que foi muito bem ensaiada para apresentar. Sentaram Becky em uma cadeira sozinha no meio da pista e quando a música começou a tocar e ela reconheceu a melodia, ficou quase sem ar de tanto que riu. E acho que o mesmo pode ser dito dos demais convidados. Mamãe olhava pra mim procurando uma explicação, mas eu também não sabia de nada, aquilo tinha sido obra dos meninos e ninguém mais.

Depois de um flash mob e daquela apresentação ao melhor estilo Backstreet Boys nenhuma outra surpresa apareceu, então a festa correu como qualquer outra festa de casamento. Estava na mesa com a turma e era impossível não notar que metade de nós éramos casais. Jamal não conseguiu ficar nem cinco minutos sentado e levantou reclamando que casamentos eram ótimos para se divertir sem compromisso e não ia conseguir isso sentado com casais. Quando saiu da mesa determinado, levou com ele Julian, MJ e Zach, que também estavam solteiros. Kaley e Elena ficaram na mesa conosco sem a mesma animação dos meninos, mas acho que se arrependeram logo. Nem eu sei quando aconteceu, mas o papo acabou sendo casamentos. Rupert ficou logo tenso, sabia muito bem que se tocasse nesse assunto assim tão cedo com Amber, corria o risco de ficar solteiro. Mas Keiko e JJ, Haley e Justin e Arte e Tuor falavam do assunto com tanta naturalidade que fiquei um pouco assustada. Não, aterrorizada seria a palavra mais adequada.

- Ai gente, vocês não acham cedo demais pra falar disso não? – resmunguei e ouvi Hiro rindo baixo no meu ouvido.
- Ninguém está marcando data de casamento, não tem nada demais falar sobre isso – Keiko se defendeu e os outros apoiaram.
- Bom, eu já marquei data! – Arte levantou a mão empolgada e todo mundo riu quando Tuor bateu palmas animado.
- Vocês são todos loucos. Não sei nem se quero casar ainda!
- Ah, bom saber disso – Hiro disse em tom de brincadeira e ri, mas o clima na mesa mudou.

De repente o assunto era outro, começaram a falar do flash mob e de como as pessoas reagiram surpresas e depois queriam participar. Hiro não parecia chateado com nada, participava do papo normalmente, mas eu estava incomodada. Lembrei-me de Sheldon, drogado, me pedindo para não magoar seu amigo. Será que eu havia o magoado dizendo que não pensava em me casar? Hiro nunca havia dito nada sobre isso, mas todo mundo sabia que ele era essa pessoa. Ele era o tipo que um dia quer casar e ter filhos, construir sua própria família. E eu ainda não sabia se queria isso.

- Vamos dançar? – convidei-o e ele sorriu, levantando da mesa e me estendendo a mão.
- Você está bem? – perguntou quando já estávamos fora do alcance dos ouvidos de nossos amigos – Está um pouco tensa.
- Você quer se casar? – perguntei do nada e ele me olhou assustado.
- Está me pedindo em casamento?
- Não! Merlin, não! – ele riu do meu desespero e bati em seu peito – Não tem graça.
- Clara, relaxa. Eu sei que você não é aquela menina que sempre sonhou com um vestido branco e um príncipe encantado. Sei onde estou me metendo e não ligo, porque eu te amo.
- Mas você quer isso tudo, não quer?
- Não sei, provavelmente sim, mas não penso nisso ainda. Não completei nem 19 anos.
- Obrigada! Somos novos demais para isso, não é? Arte e Tuor são dois loucos apressados.
- Dois loucos apressados e apaixonados, mas com eles é tudo muito mais intenso, era de se esperar que casassem logo. Nós somos diferentes, temos outros planos para o futuro.
- E se no meu futuro não tiver nenhum casamento e nenhum filho? Você ainda vai estar nele?
- Você me quer nele?
- Eu também amo você e não quero que isso nos afaste.
- Por que não deixamos para ter essa conversa quando chegar a hora? Temos muitos anos pela frente ainda e as coisas mudam. Olhe para você, por exemplo. Há três anos imaginava que seria mãe adotiva de Sheldon e estaria cursando medicina?
- Ou que estaria namorando você? – completei e ele segurou meu rosto para me beijar.
- Exatamente. Quem sabe daqui a uns anos você não muda de ideia e decide que quer se casar comigo?
- Isso foi um pedido?
- Ainda não, mas quem sabe no futuro...

Sorri para ele e o beijei de volta, o puxando pela mão para o meio da pista de dança. Ele tinha razão, era cedo demais para falar sobre isso. Se nossos amigos acham que é hora de pensarem em casamento, bom para eles, mas nós pensávamos diferente. Ainda tinha cinco anos de faculdade de medicina pela frente e mais sete como residente de cirurgia, não queria nem saber de nada disso até ter conquistado todos os meus objetivos. E para ser bem sincera, talvez nem depois que eu tivesse conquistado tudo isso.

°°°°°°°°°°

Em algum lugar do futuro.

Foi um plantão exaustivo. 48 horas sem dormir, me mantendo acordada à base de muito café e energético, e mais um plantão de 32 pela frente em menos de 24 horas. Precisei tomar um relaxante muscular com a capacidade de derrubar um elefante quando cheguei em casa e apaguei no instante que minha cabeça encostou no travesseiro.

Não sei por quanto tempo dormi. Pela dor que sentia em todo o corpo, não o suficiente. Amanhã seria um longo dia, já podia prever. Demorei um tempo até perceber o que me acordou. O remédio ainda estava fazendo efeito, meu cérebro estava uma bagunça. Meus olhos procuraram pelo relógio. Nem cedo nem tarde, mas ainda não era hora de acordar.

Pisquei confusa e então percebi o que havia me despertado. Tinha um pé no meu pescoço. Um pé minúsculo que havia acertado meu rosto e escorregou quando me mexi. Virei o corpo na cama com dificuldade e sorri quando vi a dona do pé espalhada no colchão embolada na coberta feito um macaco sem modos para dormir. Minha anjinha rebelde. Ele deve dê-la deixado pular para cá antes de ir trabalhar.

Mesmo com dor, me movi o suficiente para puxá-la para junto de mim. Ela se agitou quando mexi seu corpo, mas sossegou quando a abracei e não acordou. Ela era tão pequena e já tão geniosa. Mamãe se divertia dizendo que agora eu sabia o que ela passou comigo. Sorri lembrando o jeito que ela se sentiu orgulhosa quando ouviu a avó contar que era mais parecida comigo do que pensava e alisei seus cabelos, beijando sua testa.

E pensar que houve uma época em que a ideia dela um dia fazer parte do meu futuro me apavorava e nunca era cogitada. Olhando para ela dormindo aconchegada em meus braços, não conseguia entender como um dia pude viver sem ela. 

Posted: by Ethan M. Warrick in
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Sexta feira, Novembro de 2017, Hospital John Radcliffe, Londres.

- Olha quem veio visitar o papai!- disse Brianna entrando na sala dos médico onde eu estava com alguns colegas vendo as fichas de alguns pacientes, e descansando da marcação cerrada dos meus novos internos. Ela estava com Lance no colo e todo mundo parava para ver meu filho, que ao me ver esticou os braços e gritou coisas ininteligíveis mas que deviam ser boas, pois ele sorria feliz.E eu confesso que me sentia aliviado em chama-lo de filho, desde que sua guarda definitiva foi passada para nós, há dois meses atrás.
- Hey carinha, ficou com saudades?- perguntei enquanto o pegava e ele me abraçava confiante, deitando a cabeça no meu ombro, resmungando. Acho que ele devia estar respondendo a minha pergunta, pois adorava ‘conversar’:
- Tudo bem com ele? – quis saber após beijar minha mulher.
- Ligaram da creche, pedindo para buscá-lo. Ele estava um pouco febril e enjoado para comer. Só se animou quando disse que viríamos visitar você. Daqui a pouco vamos subir para ver a Miranda. – assenti, pois Miranda Donovan, era nossa pediatra residente, e muito competente. Sentei-o na mesa e enquanto eu pegava o termômetro que trazia no bolso para examinar o bebê, Brian abriu a porta e sorriu para a irmã, mas antes de fechar a porta disse por cima do ombro:
- Daqui a pouco farei uma laparoscopia e ainda não decidi o interno que vai me acompanhar, pois estou com fome... Vão! – e pela janela da sala vimos os quatro internos da cirurgia que o acompanhavam como se fossem sombras saírem correndo em direção à lanchonete.- rimos, pois o mesmo acontecia comigo.
- Oi amigão, veio ver onde vai trabalhar com o titio? Mana, você está linda como sempre.- abraçou a irmã e passou a mão na cabeça de Lance bagunçando seu cabelo e recebeu um resmungo engraçado, enquanto Brie fingia estar chocada:
- Brian! Você não tem vergonha de abusar destes coitados?- e ele respondeu:     
- Faz parte do aprendizado: ‘manda quem pode, obedece quem tem juízo’. E eu não fiz nada, só disse que estava com fome. – e eu o apoiei:
- Verdade, em nosso tempo, nem precisavam nos avisar, compramos muitos frapuccinos para a tia Louise ou espressos pra tia Sam...- e ele completou:
- Bolinhos de mirtilo pra Morgan...O que andam ensinando na faculdade hoje em dia? - e eu ri querendo saber:
- Algum deles já vomitou?
- Não, mas um dos rapazes, desmaiou na galeria quando me viu reparando um intestino delgado.E os seus?- sorri perverso:
- Todas as fichas estão atualizadas, nosso estoque está abastecido com as últimas novidades em suturas..(ao olhar interrogativo dele, respondi): - Carter é ótimo em novas aquisições...Assim sendo, hoje vou embora mais cedo.- dizia enquanto apontava a nossa nova cafeteira, e Brian suspirou enquanto se servia de café fresco.
- Vocês são maus. Mas gostei da ideia de você chegar mais cedo em casa. – disse Brie piscando para mim, terminei de examinar Lance, e disse:
- Acho que é só um resfriado, mas é bom confirmar com a Miranda.Os dentes nascendo o deixam enjoado também.  – nesta hora bateram na porta e uma enfermeira entrou dizendo:
- Doutor Warrick, sua irmã e sua sobrinha estão procurando o senhor.- e deu passagem para Haley e Keiko. - fui recebe-las no meio do caminho perguntando preocupado:
- Pepper?Kika? Aconteceu alguma coisa?  
- Estávamos em dúvida entre fazer faxina ou ir ao St. Mungus, ficamos com a segunda opção, mas nem conseguimos ver nossos namorados usando jaleco e salvando vidas, tia Louise faz marcação cerrada, mal  deu tempo de fingir uma doença, e ela nos botou para correr.- disse Keiko rolando os olhos.
 - Optamos em ver você e Brian, os únicos médicos bonitos que podemos apreciar....Mas sinto muito, agora eu me rendo à coisa mais lindinha do mundo.- respondeu Haley e foi para o lado  do meu filho que não se fez de rogado com as suas admiradoras, e tampou o rosto num claro convite para brincar de esconde esconde.Ouvimos uma batida na porta e um dos sombras de Brian, entrou com um saco de papel de onde saia um cheiro bom, dizendo:
- Sanduíche de bacon com salada, fritas e molho extra, do McGees Seu favorito doutor McGregor. – e quando Brian pegou o saco de papel, seu bip soou alto. Após olha-lo ele disse:
- A hora do play acabou. Até depois meninas.- passou o saco de papel para mim e deixou seu interno sem saber se o acompanhava ou não.- olhei para o rapaz e disse:
- Está esperando um convite?- e o rapaz saiu correndo atrás de Brian.
- Vou subir com o Lance até a pediatra, gostariam de vir comigo?- convidou Brianna e Haley me olhou daquele jeito dela, quando queria desabafar e eu disse:
- Leve a Keiko com você, amor, eu queria falar um pouco com a minha irmãzinha e depois ela encontra vocês, ok?- elas assentiram e Haley ficou comigo.
- Então, o que está te chateando? Deve ser grave, você odeia vir ao hospital por causa das almas penadas. -  e ela após suspirar disse:
- Não são almas penadas, já disse que são espíritos confusos que precisam de ajuda. Briguei com o Justin...Quer dizer, ele é que está irritado, sem falar comigo comigo e eu não fiz nada... – cruzei os braços ao encara-la e ela disse:
- Quer dizer, ele ficou todo ofendido, porque ofereci pagar o curso de medicina para ele na mesma faculdade da Clara.
- Wow, você ofereceu Oxford? Entendo porque o garoto ficou nervoso.
- Você não está me ajudando.- ela disse fechando a cara e eu a ignorei:
- Sei que teve boa intenção, mas ele quer vencer por esforço próprio e nenhum cara gosta muito de depender financeiramente da namorada ou do dinheiro dos sogros.
- Eu sei, mas ele seria um ótimo médico, tem talento, você mesmo já disse isso. E com a morte do pai dele, eu queria ajuda-lo de alguma forma, afinal estamos juntos, e não é dinheiro do papai, é meu. Posso fazer o que quiser com o meu dinheiro, não? Aposto que se fosse o contrário, ele me ajudaria.Será que você não poderia conversar com ele e mostrar que orgulho não leva a nada?
 - Huum...Agora chegamos ao motivo de sua visita. Você quer que Justin ao invés de ficar irritado com você, fique zangado comigo?- e ela teve a decência de fingir espanto:
- Claro que não! Só estou falando nisso porque você perguntou.- sorri e disse:
- Eu acho que não é tanto o orgulho que faz com que ele rejeite a sua oferta generosa, mas o fato de agora ele ser o homem da casa, e querer resolver as coisas como o pai teria feito. Eu admiro isso. E você há de convir, que por um bom tempo, ele precisa estar mais perto da família e da tribo, e ir para Oxford, vai tornar isso quase impossível. Mas dê um tempo, não o pressione e se ele quiser ajuda para a faculdade, eu ofereço um empréstimo, talvez isso ele aceite.- e ela sorriu concordando:
- Sim, isso ele aceitaria, nem que fosse para te dar um rim em pagamento. Eu sabia que falar com você, deixaria tudo mais fácil. – e me abraçou feliz, nessa hora outra enfermeira entrou na sala e disse apressada:
- Doutor Warrick, ambulância chegando em dois minutos.- assenti e ensinei minha irmã a chegar até a pediatria e fui para a porta da emergência esperar o meu próximo paciente.

o-o-o-o-o-o-

- O que temos aqui, Sarah?-  eu quis saber, enquanto recebia a maca com um paciente desacordado dos paramédicos.
- Izabel Burns, 10 anos, encontrada desmaiada em seu quarto, suspeita de overdose de remédios para dormir.  Administrei 2 ml de narcan no local, pois estava sem respirar, pusemos no oxigênio, não sei se ela tomou mais alguma coisa... A mãe adotiva, disse que não tinha tempo de ficar de olho em uma menina problemática. - ela disse revoltada, me entregando as embalagens de remédios vazias, enquanto eu examinava as pupilas da criança. A menina apesar da idade declarada, parecia mais nova, e quando fui verificar seu pulso, vi que ela tinha cicatrizes antigas, indicando que não era a primeira vez que ela tentava se matar. Droga, não sairei mais cedo hoje.
Minhas sombras estavam perto de mim acompanhando tudo o que eu fazia e eu ia explicando os procedimentos, afinal eles estavam ali para aprender, mas eu não ligava. Havia aprendido a me concentrar no paciente por mais caótico que o ambiente estivesse. Após fazer tudo que era possível por Izabel, mandei transferi-la para um quarto, solicitei avaliação psiquiátrica,e mandei uma de minhas internas ficar de olho nela e ir me atualizando.Nesse meio tempo, fui levantar a ficha da paciente.Liguei para o Serviço Social e consegui com meu contato a ficha de Izabel. A consulta de meu filho havia terminado e Brianna iria leva-lo para casa e as meninas foram com ela, fazer uma noite das garotas, já que eu demoraria a sair do hospital, pois tinha havido um acidente com um ônibus de turistas.

Mais tarde quando o hospital estava relativamente calmo, sentei para tomar um café enquanto relia a ficha de Izabel. Ela ja havia passado por pelo menos cinco casas diferentes, e isso desde os cinco anos de idade, após a mãe viúva, morrer em um acidente trabalho. Nenhum familiar quis assumir a guarda da criança, que era considerada problemática, devido a crises de asma, e com problemas de aprendizado, porém os exames feitos não atestavam nenhum problema físico, já que os testes de QI, feitos pelo serviço social, revelavam uma inteligência acima da média. Vendo sua ficha com os atendimentos, inclusive a tentativa de suicidio, um ano antes, me levou a crer que seu principal problema de adaptação era emocional. E a casa aonde ela estava já contava com mais 4 crianças em idades variadas. Meu contato havia dito que aquela seria a última chance da garota em uma casa supostamente normal, e caso não se adaptasse voltaria para um abrigo, de onde sairia quando se tornasse maior de idade.  Naquele dia, depois da minha última ronda, passei em seu quarto e vi que ela continuava a dormir. Fui embora para casa, porém não parava de pensar na situação daquela criança.

No dia seguinte, fui ao quarto dela e a encontrei deitada na cama fingindo dormir.Mesmo assim me apresentei e disse que estava ali para ajudar, e que quando ela se sentisse pronta gostaria de conversar com ela, e fiz isso várias vezes durante o plantão. Sabia que ela me ouvia porque suas pálpebras tremiam e sua respiração mudava. Esta foi a rotina por dois dias, no terceiro dia estava terminando de assinar um pedido de tomografia, quandi vi a interna que eu havia mandado ficar de olho em Izabel, conversando com um de seus colegas.     
- Hey Eckle, porque está aqui no corredor e não com a minha paciente? – e ela se engasgou.
- Ela teve uma crise histérica na hora que o psiquiatra começou a consulta-la.Fui dispensada...Ou não...- disse quando viu a minha expressão irritada enquanto me encaminhava para o quarto de Izabel. Ao chegar ainda encontrei o atendente de psiquiatria fazendo anotações na ficha da paciente e ela estava apagada e com o rosto ainda molhado pelas lágrimas, enquanto seus braços e pernas estavam amarrados. 
O quarto estava todo bagunçado e vi que a assistente social que estava lá, era Maxine Latif, uma velha conhecida.
- Isso era necessário, Vince? É só uma criança.- perguntei severo para o meu colega, enquanto apertava a mão de Maxine.
- Ela se recusou a conversar comigo, e quando tentei me aproximar, ela teve uma crise, arrancou o soro do braço sem nem sentir, acertou uma das enfermeiras com a bandeja de comida e eu nem fiz nada...- vi que ele trazia arranhões nas mãos e rosto.
- Mas eu estava fazendo progressos...Vocês a assustaram com alguma abordagem descuidada.
- Não queira ensinar o meu trabalho, doutor Warrick.- e vi que Vince estava irritado:
- Desculpe, doutor Cooper. Deixei-me levar pela emoção. Estamos com o mesmo objetivo aqui. - e ele se apaziguou, quando o encarei sério, afinal eu era o chefe dos internos.
- Achei necessário para preservar a integridade física da paciente. Ela tentou se matar antes e não queria ela fazendo isso de novo enquanto gritava que eles iriam machuca-la, isso depois de saber que teria que ir para um abrigo.
- Eles? Eles quem? Alguém das casas aonde ela ficou?- e a assistente social disse:
- Izabel nunca reclamou comigo...Na verdade eram os pais que pediam para que ela fosse recolhida por nós, pois ela assustava as outras crianças.Diziam que ela era esquisita, antissocial e esta última família me pediu que ela não voltasse mais, eles temem por sua segurança.
- Ela atacou alguém? Matou algum bicho de estimação? Não sente remorso? – indaguei.
-Não doutor, mas acho melhor não esperar que isso aconteça. Gostaria muito que alguém tivesse uma chance de se conectar com ela para que pudéssemos saber como ajuda-la. – disse a assistente social  e o médico disse:
- Vou ter que transferi-la para a clinica psiquiátrica, é a regra em casos de surto.
- Não faça isso ainda. Deixe-me tentar mais uma vez, Vince.
- Ela é perigosa para si mesma...Lá teremos mais recursos.- ele teimou, mas eu insisti:
- Na clínica ela vai estar sedada a maior parte do tempo, e sabemos que isso não é o ideal para uma criança que claramente precisa de nossa ajuda, e ainda não tentamos tudo, sei que posso alcança-la. Sabe que sou bom com crianças, e você conhece a minha mulher, ela pode me ajudar, por favor?- olhei o médico bem nos olhos e ele desviou os olhos para a assistente social  que após pensar um pouco, assentiu:
- Vou fazer a visita novamente ao final do meu plantão, se você conseguir algo até lá...Mas se houver mais algum incidente, ela vai para a clinica. Estou sendo claro, Ethan?- disse Vincew se rendendo e depois saiu porta afora. Sai para o corredor e gritei:
- Eckle?- e a minha interna veio correndo e nem dei tempo para ela respirar:
- Seu trabalho hoje é ficar colada na Izabel, e se ela respirar de forma diferente, quero que me chame, caso isso não aconteça pode dar adeus ao seu emprego. Fui claro?- ela assentiu, caminhei pelo corredor e a assistente social veio junto comigo:
- Doutor Warrick, porque está tão interessado em Izabel? Sabe de algo que eu não sei?- suspirei e disse:
- Eu gostaria de tentar tudo que estiver ao meu alcance por esta menina, pois tenho a sensação de que é o certo a se fazer, pode aceitar isso, Max?- e ela me olhou especulativa:
- Eu o conheço e sei que costuma agir certo, e espero realmente que algo de bom saia disso. Nos veremos ao final do dia doutor.- nos despedimos e eu fui ver os outros pacientes.

Passadas duas horas voltei ao quarto de Izabel e ela estava de olhos fechados. Aproximei-me da cama e disse:
- Sei que está acordada, pode olhar-me enquanto conversamos? É só o que peço.- ela abriu os olhos e eu sorri:
- Oi, você já sabe quem eu sou. Vou desamarrar você, porque acredito que você não quer machucar ninguém.- a soltei e ela olhou os pulsos avermelhados. Estendi uma bisnaga para ela, que pegou por instinto:
- É uma das manipulações do meu pai, vai ajudar com as marcas. - ela ficou olhando a embalagem em sua mão e eu continuei:
- Izabel, sei que você teve uma vida difícil, e que não é fácil quando parece que ninguém se importa com a gente. Eu sei como é isso, também já estive no sistema, e cheguei a pensar que morreria nele. Porém, eu tive a sorte de conhecer pessoas que se importavam comigo, mesmo sem me conhecer,  eu gostaria de fazer o mesmo por você, se você aceitar.- ela arregalou os olhos e começou a usar o creme que eu havia dado a ela. Aproveitei que ela estava focada em mim.
- A assistente social me contou, que você teria que  ir para um abrigo e eu gostaria de oferecer a você uma vaga no local que eu e minha esposa temos. É um lugar próprio para as pessoas se sentirem seguras e eu garanto que não vamos amarra-la, você terá ajuda, poderá ter uma vida normal.- ela largou o creme, senti que ela se distanciava,  quando achei que ela não fosse mais notar a minha presença ela disse:
- Você é um daqueles esquisitos?
- Que esquisitos?
- Aqueles que gostam de crianças pequenas ou só de meninas....
- Não, eu não gosto de crianças ou de meninas. Não deste jeito. Sou pai, tenho sobrinhos e sobrinhas e eu levo a minha função muito a sério. Porque? Alguém tentou alguma coisa com você? Quer falar sobre isso?-pressionei e estiquei o braço para pegar na mão dela, ela se retraiu. Quis bater minha cabeça na parede por ter sido impaciente. Respirei fundo e tentei novamente:
- Foi por isso que você surtou com o doutor Cooper, não é? Por um homem querer toca-la?- e ela assentiu rápido, ficando vermelha.
- Eu sei como é.- e ela me olhou curiosa, senti que baixava um pouco a guarda e me animei:
- Quando fui adotado, demorou muito para eu tolerar o toque da minha nova mãe, o que foi um pouco complicado, porque ela é muito de afagos, beijos sabe? E meu pai...Mesmo sendo o homem mais bondoso do mundo, só conseguiu ganhar um abraço, sem que eu tremesse todo, depois de muito tempo, mas ele teve paciência e esperou eu estar pronto.  Nem todo mundo que é bom, quer algo em troca, Izabel.- ela assentiu mas vi que ainda continuava com medo e disse muito baixinho, e eu tive que me inclinar para a cama para tentar ouvi-la:
- Mas este lugar para onde você quer me levar, tem onde me esconder deles?Posso ficar em um quarto só meu? É mais seguro e eles não podem fazer mal aos outros...
- Sim, você poderia ficar em um quarto só seu, mas de quem você tem medo?- e ela acenou com a mão para que eu me aproximasse dela, e quando eu estava bem perto, ela colocou as mãos em concha sobre sua boca e sussurrou em meu ouvido. Depois de ouvi-la, eu entendi o motivo de tantos problemas emocionais. Meus instintos estavam certos, Izabel realmente precisaria de ajuda antes que enlouquecesse e eu sabia a quem recorrer.