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Novembro de 2018
Se houve alguma vez em que me questionei sobre minha decisão
de me candidatar ao curso preparatório para os Bruxos de Elite, foi naquele
novembro de 2018. Sob a supervisão do Tenente Sanders e dos professores Seth
Chronos e Calleb Langston, a turma estava sendo submetida a uma bateria de
exercícios projetados para fazer o candidato desistir. Éramos constantemente
incentivados a pedir para sair, sempre aos berros, mas até agora apenas dois
alunos haviam jogado a toalha. O resto seguia aos tropeços, mas firme.
Estávamos passando por uma verdadeira provação.
Éramos divididos em duplas diferentes o tempo todo e estava
trabalhando com James naquela quinta-feira. O último exercício do dia era
carregar morro acima um saco de areia que pesava 70 kg . Ele representava um
soldado ferido e tínhamos que transportá-lo até a base com cuidado e depressa,
duas palavras que não costumam combinar. Depois de subir mais de 100 degraus, a
sensação que tinha era de que meus braços iam cair a qualquer momento. Não
muito na nossa frente, Kaley e Julian iam arrastando o saco já sem quase nenhum
cuidado. Kaley estava com jeito de que ia vomitar.
- Não joga ele no chão que ele está ferido! – o professor
Chronos gritou com Julian e Kaley quando eles deixaram o saco cair no chão de
qualquer jeito para descansarem alguns segundos e começou a fazer massagem
cardíaca nele.
- Quando o corpo não agüenta, é a cabeça que manda! – o
Tenente Sanders gritou no nosso ouvido e erguemos mais o saco – Minha filha de
11 anos faz isso!
Mais atrás Elena e Penny vinham com o saco nos ombros e já
não tinham mais forças para andar. Paravam a todo instante para ajeitar o peso
e o professor Langston vinha no calcanhar delas, disposto a fazê-las abandonar
a turma.
- As senhoritas estão morrendo? Querem desistir?– ouvi-o
gritar e elas responderem um “nunca senhor” sem muita empolgação – Então
avancem!
James parou de correr para ajustarmos o saco de areia nos
ombros e tentar chegar até o final cansando menos e nesse segundo em que paramos
vi Daniel e Kevin passando Elena e Penny. Daniel, que era mais forte que Kevin,
puxou todo o peso para si para conseguir correr mais depressa, deixando o outro
sem nada na mão. James bateu a mão no rosto um segundo antes do Tenente Sanders
ver a cena e correr até eles.
- O senhor vai deixar o seu companheiro para trás? –
perguntou duro para Kevin, que não sabia se respondia ou voltava para ajudar
Daniel – O senhor vai deixar o seu companheiro carregar todo o peso?
- Não senhor! – ele enfim respondeu, gaguejando.
- REGRA Nº 15, CADETE! – o Tenente gritou tão alto que achei
que Kevin fosse borrar as calças.
- Sempre trabalhe em equipe, senhor! – Kevin respondeu já
voltando para ajudar Daniel.
- Se o senhor estiver muito cansado, se acha que não precisa
carregar um soldado ferido em batalha e prefere deixá-lo morrer, basta o senhor
avisar e paramos agora o treinamento. É isso que o senhor quer?
- Não senhor! – respondeu outra vez, já com metade do saco
de areia no ombro.
- Se não chegarmos nessa maldita base nos próximos cinco
minutos, você vai ter que carregar o saco e eu – disse secando o suor do rosto,
que já estava gelado – Estou prestes a desmaiar.
- Então vamos apertar o passo, porque já estou quase
vomitando com um peso morto só, dois eu não aguento!
Alcançamos a base antes que eu perdesse os sentidos e no
instante em que largamos – com cuidado – o saco de areia na maca, James parou
ao lado de Kaley para vomitar toda a água que havia bebido durante o dia. Olhei
para Julian, que estava estirado feito o homem vitruviano no meio do pátio, e
me larguei ao lado dele. Minha cabeça parecia um tambor, acho que nunca senti
uma dor tão forte. Quando fechava os olhos, tudo que via eram pontos brancos.
- Acho que acabei de ver meu tio-avô que morreu ano passado
– Julian comentou fechando os olhos com força e abrindo outra vez, parecendo
atordoado – Ele parecia feliz.
- Não o siga até a luz. Fique conosco.
- Muito bem, senhoritas! – ouvi a voz do Tenente Sanders
entrando no pátio, mas não consegui mover sequer a cabeça para olhar – São 16h
da tarde agora. Quem conseguiu chegar até aqui com o soldado ferido vivo, está
liberado das atividades por hoje. Amanhã faremos um treinamento de
rastreamento! – sua voz tinha um tom de empolgação preocupante – Aconselho-os a
descansarem bem essa noite e que comecem imediatamente.
O treinamento de rastreamento pode ser resumido em uma
palavra: perdidos. Fomos arrancados da cama às 3h da manhã e divididos em
duplas outra vez, cada par foi abandonado com vendas nos olhos em um ponto
diferente no meio de uma floresta. Minha parceira do dia era Elena, o que
tornou a coisa toda ao menos um pouco divertida, mas munidas apenas de uma
bússola (não tínhamos autorização de usar o feitiço quatro pontos e tivemos as
varinhas confiscadas), levamos quase seis horas para encontrar o caminho de
volta. Já havia amanhecido há séculos quando chegamos à base completamente
sujas de lama e arranhadas, sem falar na fome.
- Deixem a bússola com o professor Chronos e estão
dispensados pelo resto do dia – o professor Langston avisou.
- Semana que vem é a nossa tão aguardada aula de
Sobrevivência na Selva e ela vai durar cinco dias – Chronos dizia bastante
empolgado. Isso nunca era bom sinal – Tragam casacos, costuma fazer frio na
mata.
- Cadete Beckett, antes de ir embora passe em meu escritório
– o Tenente Sanders me parou quando estava saindo com Elena.
- Sim senhor.
- O que você fez? – Elena perguntou rindo.
- Não faço ideia. Será que devo me preocupar?
- O Tenente chamou você no escritório dele fora do horário
de aula. Você sempre deve se preocupar.
- Meninas, James pediu para avisar que Kaley está na
enfermaria – Kevin passou do nosso lado vindo da direção contrária.
- Merlin, o que houve? – falamos ao mesmo tempo.
- Não sei, ele só pediu para avisar vocês, acho melhor
passarem lá.
Saímos tão desesperadas para a enfermaria que atropelamos um
garoto do 1º ano que vinha carregando um cesto de roupa suja pelo corredor. Só
gritamos um “sinto muito!” enquanto subíamos as escadas apressadas, mas já
tivemos que lavar muitas vezes o mesmo cesto de roupas quando éramos novatas
por causa de algum “acidente” causado por um veterano, ele ia superar.
Kaley estava acomodada em uma das camas com a cara mais
pálida do mundo, mas parecia bem. James estava plantado ao seu lado feito um
cão de guarda e contou que eles perderam o cantil com água na metade da
madrugada e ela começou a se sentir mal quando já estava perto da base, mas
ainda tinham pelo menos meia hora de caminhada pela frente. Desidratada e sem
ter descansado o bastante, Kaley desmaiou e ele teve que carregá-la até a base.
Logo percebemos que estávamos sobrando. James já estava
cuidando muito bem dela e não tinha nada que pudéssemos fazer para ajuda-la a
melhorar rápido, então nos despedimos pedindo que obedecesse ao médico e
deixamos os dois sozinhos outra vez. Elena também se despediu dizendo que
queria chegar em casa antes do almoço e voltei aos dormitórios para trocar de
roupa e ir até o escritório do Tenente Sanders.
Ele não estava lá ainda quando cheguei, mas se aprendi uma
coisa nesses quase um ano e meio como cadete é que se um superior mandou você
ir até sua sala, você deve esperar do lado de fora dela até que ele o receba
independente do tempo que isso leve. Naquele caso, esperei por quase 20 minutos
até que ele finalmente apareceu. Abriu a porta e gesticulou para que eu
entrasse, mas fiquei de pé esperando que ele se acomodasse e me autorizasse a
sentar. Outra coisa muito importante que nossa turma aprendeu de forma dura
ainda no 1º dia de aula.
- Sente-se – ele apontou para a cadeira e obedeci – Você
sabe por que lhe chamei aqui hoje, cadete?
- Não senhor.
- Regra nº 10.
- Nunca se envolva pessoalmente em um caso – disse
imediatamente.
- Exato. Terminei de avaliar os trabalhos da turma sobre os arquivos
mortos e você quebrou essa regra, não quebrou? – ele falou sério e assenti,
começando a sentir minha mão gelar. Ele ia me suspender.
- Sim, eu quebrei, mas- - ele ergueu a mão e me cortou.
- Não estou pedindo explicações, perguntei apenas se havia
quebrado a regra. Você a quebrou? – e assenti reafirmando – Se já tivesse um
distintivo, cadete, estaria tendo o mesmo apreendido e seria suspensa. No
entanto, você ainda é apenas uma aluna. E o seu relatório está entre os seis
que chamaram a minha atenção. Você apresentou mais do que o suficiente para
reabrir o caso e como havia prometido aos alunos que conseguissem provas
suficientes para isso, vou permitir que faça parte da investigação.
- Eu não vou ser suspensa? – disse surpresa e ele me encarou
com a sobrancelha erguida – Senhor. – acrescentei depressa.
- Dessa vez vai sair apenas com um aviso, mas se passar por
cima de mais alguma regra por qualquer que seja o motivo, não me importa se
ainda não se formou, você será punida.
- Sim senhor, não vou descumprir mais nenhuma regra.
-E seu acesso à investigação será limitado. Ainda uma aluna
ou não, continua sendo um caso pessoal. Se em algum momento eu achar que isso
está atrapalhando seu julgamento, irei afasta-la do caso.
- Não vou deixar que nada atrapalhe, senhor. Sou racional,
sei separar as coisas.
- Não faça promessas que não pode cumprir, cadete Beckett.
- Essa promessa eu vou cumprir, senhor.
- Veremos. O caso será reaberto em breve. Regra nº 14.
- Nunca esteja inacessível.
- Está dispensada.
Assenti sem dizer mais nada e levantei, saindo da sala dele
tentando ao máximo não correr. Ele ia reabrir o caso dos meus pais. Precisava
sair daquele quartel o mais depressa possível e contar a novidade a Rupert.
Dessa vez nem passei pela portaria, aparatei direto no corredor do andar dele e
entrei com a chave que ele havia me dado.
- Rupert? – chamei quando vi a sala deserta e o loft em
silêncio total – Rupert, está em casa?
- Escritório! – ouvi-o gritar e larguei a mochila na sala,
indo até ele.
- Rupert? – chamei outra vez quando abri a porta do
escritório e vi que ele estava sentado no chão.
- Um segundo – disse levantando um dedo sem tirar o olho da
tela.
Pela maneira que digitava estava terminando algum capitulo,
mas não sabia que já havia começado a trabalhar no 3º livro. O 2º, Câmara
Secreta, havia sido lançado a menos de seis meses, e Rupert ainda estava fazendo
tour de divulgação. Fiquei vendo ele digitar sem nem piscar por quase um
minuto, até que finalmente parou e fechou o laptop antes de levantar e vir ao
meu encontro.
- Ei, chegou cedo hoje – disse me abraçando e me beijando.
- Eles cansaram de nos torturar pela semana, deram um
descanso pra recomeçar tudo na segunda. Não sabia que já estava escrevendo o 3º
livro.
- Não, não era o Prisioneiro de Azkaban, só estava anotando
algumas coisas.
- O tal livro misterioso que você não quer dizer sobre o que
é? - perguntei um pouco impaciente – Você já está nesse mistério desde
setembro, quando vai me contar?
- Já tem um ano, na verdade... – ele riu, mas eu continuava
séria – Ok, você quer mesmo saber?
- Por favor!
- Não é nada que vá ser feito antes de encerrar os sete
livros que estão me pagando pra escrever, mas estou pensando em escrever uma
série sobre a vida dos aurores. Começando com a academia, me baseando nas
histórias que você vem me contando desde o ano passado.
- Rup, essa é uma ótima ideia! – disse animada, mas ele
ainda parecia receoso – Por que não queria me contar?
- Queria ter algo mais certo
antes de falar alguma coisa, ainda nem conversei com o meu editor. E também
porque não sabia bem como você ia reagir.
- E por que eu não ia gostar?
- Porque eu quero basear a
personagem principal em você – ele me puxou para mais junto dele com um sorriso
hesitante – Você se importa?
- Você vai citar meu nome em
entrevistas?
- Só se você quiser.
- Bom, nesse caso não cite e
fique a vontade para escrever o que quiser – respondi o beijando e ele parecia
mais aliviado.
- Quer ler o primeiro capitulo?
- Logico, mas primeiro preciso
contar a novidade – disse me soltando do abraço e sentando na poltrona – O
Tenente me chamou na sala dele agora pouco e primeiro me deu uma bronca por ter
escolhido o caso dos meus pais para o projeto, me lembrou que quebrei uma de
suas regras e que numa próxima vez ele não vai perdoar, mas depois disse que o
meu trabalho foi um dos escolhidos para ter o caso reaberto.
- Amber, isso é ótimo! – Rup
sentou no braço da poltrona tão empolgado quanto eu – Eles vão voltar a
procurar seus pais.
- Acho que sua teoria da CIA não
era tão louca, afinal.
- Bom, o amigo do Nick encontrou
o nome deles no banco de dados da CIA, mas isso não quer dizer que eles eram
espiões. Pode ser qualquer coisa.
- O que quer que seja, acho que
dessa vez vão descobrir.
- E ele vai deixar você trabalhar
no caso mesmo tendo quebrado a regra nº 10? – eu realmente devia contar tudo,
para ele já ter decorado as regras do Tenente.
- Ele avisou que se perceber que
o fato deles serem meus pais está atrapalhando meu julgamento, vai me tirar do
caso.
- Você vai tirar isso de letra,
não se preocupe.
- Eu sei, mas caso eu não
consiga...
- Você vai conseguir.
- Rup, caso eu não consiga... –
insisti e ele não interrompeu outra vez – Quero que me prometa uma coisa.
- O que quiser.
- Preciso que você me impeça de
me afogar nesse caso. Eu nunca quis respostas, é a primeira vez que sinto essa
necessidade de saber o que aconteceu. Não sei como vou reagir quando as
perguntas começarem a ser respondidas e sei que quando fico frustrada, fico
obcecada até conseguir o que quero. Não me deixe afundar.
- Minha mão sempre vai estar aqui
pra puxar você de volta, não se preocupe – ele ficou de pé e me puxou da
poltrona para um abraço – Você vai ficar bem.
- É... Espero que sim.
Deitei a cabeça em seu ombro e não consegui impedir que um
suspiro escapasse, porque por mais que eu quisesse acreditar que tinha tudo sob
controle, no fundo eu sabia que estava prestes a começar algo que ia levar até
o fim, custe o que custar.