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Já haviam se passado cinco dias desde a morte de Otter e eu
me sentia mais perdido do que nunca. Não conseguia focar no trabalho, ficar
dentro de casa encarando a tela do laptop era enlouquecedor, eu não sabia o que
fazer para me distrair e parar de pensar no que havia acontecido. E não queria
pedir ajuda à família, estavam todos tão ou mais abalados que eu, não seria
justo. Quando minha mãe morreu eu era criança, era normal apenas chorar, mas
agora eu não sabia como reagir. Estava entre a depressão e o estado de choque.
Foi Jamal quem me tirou de dentro de casa. Vendo meu
desespero em me afastar ao menos um pouco do que me cercava, me arrastou de
dentro do loft para seu apartamento, apenas alguns quarteirões de distancia.
Não que tivéssemos muito que fazer, estávamos deprimidos demais para bater
papo, mas só de sair de casa senti-me um pouco melhor.
Jamal havia se tornado meu melhor amigo desde que nos
formamos. Quando ele começou com essa história, ainda de brincadeira enquanto
tentava me dar algumas dicas de como me soltar mais, não imaginava que ele ia
mesmo se tornar a pessoa que estava sempre ali para o que fosse preciso. Foi
ele quem me ajudou a me adaptar a morar sozinho e quem estava do meu lado
quando Amber foi embora. E fui eu quem o convenceu a voltar ao plano de estudar
direito. Um ano depois de formados e ele já estava de volta no trilho, para o
alivio do tio Quim, e agora estagiava com Gabriel. Estava trabalhando como seu
assistente.
- Preciso sair daqui – disse de repente, atirado em um dos
sofás da casa dele.
- Quer ir pra onde? – ele respondeu atirado do outro.
- Sei lá. Queria poder sumir.
- Sumir não seria uma má idéia. Tem um papel caindo do seu
bolso – ele falou e peguei, mas deixei um suspiro desanimado escapar quando vi
o que era – O que é isso?
- Uma Bucket List – ele riu – Eu sei, é idiota. Fiz porque o
Dr. Pace pediu, na época que estava fazendo terapia ainda na escola.
- Posso ver? – estiquei a mão e ele pegou o papel – Wow, tem
muita coisa.
- A maioria é besteira – ri também – Poucas coisas são
sérias.
- Ficar com ela? – ele leu o penúltimo item e dei de ombros
– Ela é...
- Sim. Eu disse que a maioria era besteira. Esse ai já era.
- A vida é uma caixinha de surpresas, cara. Nunca se sabe o
dia de amanhã.
- Onde leu isso? Na caixa de cereal? – e ele riu.
- Pra que você quer aprender Mandarim?
- Sei lá, talvez pelo mesmo motivo que quero dar um soco em
um tubarão? – respondi e ele riu olhando para a lista.
- Ah, Nº 14. Esse talvez seja o último item que consiga
realizar, então é melhor focar nos outros primeiro.
- Não se preocupe, não pretendo cumprir nada. Pode jogar
fora depois de ler.
- Como assim? Mas você ainda não cortou nenhum item! – ele
sentou no sofá – Ok, temos que consertar isso. Acho que aprendemos da maneira
mais dura essa semana que a vida é curta. E se você tem 40 itens nessa lista, é
melhor começar a riscar alguns.
- Jamal, sério, não estou no clima. Essa lista é idiota.
- Não é não. Você escreveu um monte de bobagens, realmente,
mas algumas coisas são legais. Escrever uma peça, ter um dos seus livros
transformado em um filme, ter filhos, viajar por um ano com seu melhor amigo.
Quer saber? Como eu sou seu melhor amigo e quero viajar por um ano com você, não vou deixá-lo desistir da lista. Vamos riscar algo daqui agora mesmo.
Que tal o Nº 10? – e me devolveu ao papel, levantando do sofá.
- Beber uma garrafa de tequila em 10 minutos? – li e
balancei a cabeça – Jam, isso é uma péssima idéia.
- Cenoura, você precisa parar de pensar demais – ele voltou
do bar com duas garrafas na mão – E não tem uma hora melhor para beber do que
essa. Uma pra cada!
No começo resisti, mas Jamal tinha razão. Que melhor hora
para encher a cara do quando se está deprimido? Ele abriu as garrafas,
dispensamos os copos e dentro dos 10 minutos estipulados na minha Bucket List
terminamos as tequilas. E é claro que ficamos completamente bêbados, o que nos
animou um bocado e resultou em uma vontade súbita de ir para a rua.
Já era tarde da noite e caminhamos sem rumo pelas ruas, sem
perceber que íamos em direção ao Hyde Park. Nós andamos muito. O parque estava
vazio quando chegamos exceto por alguns guardas da policia montada que
conversavam distraídos na esquina. Os cavalos estavam amarrados na grade,
relativamente afastados dos policiais. Foi Jamal quem teve a idéia.
- Vamos roubar aqueles cavalos!
- O que? – mesmo bêbado sabia que aquilo era loucura – Ficou
louco?
- Mas está na lista! – ele argumentou – Nº 15: Roubar um
cavalo da Policia Montada.
- Ah sim, então tudo bem! – aparentemente, minha sanidade
era temporária.
E nós fomos. Desamarramos dois cavalos, montamos, cavalgamos
por cerca de um quarteirão e fomos apanhados pelos policiais que não tiveram a
montaria seqüestrada. É claro que fomos presos e acabei riscando o terceiro
item da minha lista. Nº 18: Ser preso por algo maneiro.
Jamal e eu não parávamos de rir enquanto éramos levados pela
viatura que eles chamaram até a delegacia mais próxima. Fomos colocados em uma
cela com um homem que roncava alto no banco e ainda assim não conseguíamos
parar de rir. Estávamos bêbados, ora, o que mais esperar?
Gabriel foi nos tirar de lá não muito tempo depois. Em meio
às risadas, lembro-me do olhar furioso dele enquanto nos arrastava para fora da
delegacia pela porta dos fundos e nos levava de volta ao meu loft. Minha última
lembrança da noite foi dele me atirando na cama de sapato e tudo e batendo a
porta.
°°°°°°°°
Acordei com uma dor de cabeça de outro mundo na manhã
seguinte e, infelizmente, lembrava de tudo que havia feito. Gabriel ainda estava
no loft e continuava enfezado quando apareci na sala. E para minha surpresa,
Becky estava com ele. Ótimo, eles iam se juntar para fazer uma intervenção?
- Está feliz? – ele perguntou irritado e piorou quando dei
de ombros – Eu vou bater nele.
- Calma, Biel! – Becky falou menos irritada, mas também não
estava alegre – Rup, você tem idéia do que fez ontem?
- Sim, eu roubei um cavalo da guarda montada. Não estou
orgulhoso disso. Não, na verdade, estou
orgulhoso sim – e ri, o que só fez Gabriel ficar ainda mais louco.
- Você está rindo? – ele basicamente gritou e me assustei um
pouco – Rupert, você não é mais o adolescente anônimo que deixava McGonagall
enlouquecida com o resto da turma porque aprontava. Você agora é uma pessoa
publica! Você foi preso!
- Desculpa! Estávamos bêbados, não pensamos.
- Esse é o problema, você precisa pensar antes de fazer as
coisas!
- Mas eu sempre penso, Jamal disse que eu precisava parar de
pensar!
- Jamal é outro desmiolado e você não tem que dar ouvidos a
ele!
- Você o contratou como seu assistente. Por que fez isso se
acha ele um desmiolado?
- Por que sei que tem potencial, mas não quando está bêbado!
- Parem de gritar vocês dois! – Becky gritou também.
- Olha Gabriel, eu sinto muito, isso não vai mais se
repetir. Foi estupidez, eu sei, mas está tudo bem.
- Ele não faz idéia, Biel. Explique com calma, por favor –
Becky pediu e Gabriel suspirou, sentando no sofá.
- Ontem quando fui buscar vocês na delegacia, enquanto
pagava fiança encontrei um repórter de tablóide. Ele sabia que você estava lá,
alguém contou, mas precisava de uma foto para provar. Precisei da colaboração
do policial responsável, que por sua sorte é muito fã dos seus livros, para não
divulgar nada. E ele nos deixou sair pelos fundos, então ele não nos viu.
- Maninho, se ele tivesse tirado uma foto sua saindo da
delegacia, você tem idéia do impacto que isso teria na sua imagem? Você é uma
espécie de modelo para crianças.
- Mas eu nunca pedi isso, não quero ser modelo de ninguém!
- Mas você é, então é melhor se acostumar e começar a tomar
decisões melhores.
- Não agüento mais isso! Vocês me pressionando, a editora me
pressionando, eu não consigo me concentrar! Amber foi embora, Otter morreu e
vocês querem que eu sirva de exemplo pra crianças? Meu primo morreu! Ele
explodiu! Não tinha nem um corpo inteiro para enterrar! Eu não preciso de
ninguém me amolando agora!
- Otter também era nosso primo, nós entendemos, mas isso não
é motivo pra jogar fora todo o trabalho que fez até agora!
- Não, vocês não entendem, ninguém entende!
Voltei para o quarto furioso e abri o armário, pegando uma
mala e começando a atirar peças de roupa dentro. Os dois entraram logo depois,
mas os ignorei e continuei a encher a mala de roupas.
- O que está fazendo?
- Juntando tudo que preciso para passar um tempo fora.
- Quanto tempo? Para onde vai?
- Não sei, parem de fazer perguntas! Só quero desaparecer
daqui!
- Pare com isso agora, você não vai a lugar algum! – Gabriel
disse autoritário e o encarei.
- Você é meu assessor, não o meu dono. Não pode me dizer o
que fazer!
- Posso se isso vai afetar o seu futuro!
- Parem com isso! – Becky disse histérica – Parem de brigar,
por favor! Rup, se acalme, você não precisa ir embora.
- Preciso sim, eu não quero mais ficar aqui. Só quero um
tempo longe, só isso – olhei para Gabriel cansado – Não vou quebrar o contrato,
sei que tenho um compromisso com a editora e vou terminar os livros, quero
terminar eles. Só o que estou pedindo é um tempo para esfriar a cabeça. E quero
fazer isso longe daqui.
- Quanto tempo quer ficar longe? – ele perguntou mais calmo.
- Um ano – arrisquei, embora achasse que ele fosse vetar de
cara.
Gabriel não disse nada, mas vi que ele estava considerando.
Ele entendia o que eu estava pedindo. Ele também, quando era mais novo, precisou
de um tempo longe de tudo que era familiar. Ele também saiu pelo mundo sem
rumo, justamente para encontrar um. Ele fez algumas ligações, conferiu outras
coisas no celular e enfim me encarou, já sem o semblante irritado de antes.
- Ok, não vou impedir que viaje, mas vou precisar impor
algumas condições.
- Tudo bem, peça o que quiser – não acreditei quando ele
topou.
- Só um minuto, preciso de mais uma coisa antes de explicar
– e saiu do quarto.
- Vai mesmo embora? – Becky sentou na cama com um olhar triste.
- Não estou indo de vez, só quero ficar um pouco longe.
Encontrar meu caminho.
- Então tem algo que preciso lhe contar que ninguém sabe
ainda, nem mesmo Connor – ela pegou minha mão e a levou até sua barriga – Você
vai ser titio.
- Você está grávida? – perguntei abrindo um sorriso enorme,
o primeiro em dias, e a abracei – Ah Becky, que noticia maravilhosa!
- Descobri ontem, mas não consegui encontrar um meio de
contar a ninguém, com todos tão deprimidos.
- Mas é por isso mesmo que você precisa contar. Estão todos
sem esperança de nada, a notícia de que está esperando um bebê é a injeção de
animo que a família precisa.
- Tem razão, vou contar ao Connor hoje e depois aos outros.
Papai vai ficar louco.
- Merlin, ele vai ser vovô. Vai se sentir velho.
- Ai maninho, vou sentir saudades – ela me abraçou com os
olhos cheios de lagrima – Um ano é muito tempo.
- Passa rápido. E prometo manter contato sempre, quero
acompanhar você ficando gigante mesmo de longe – e ela me deu um soco no braço.
- Promete que vai estar aqui para o primeiro natal do bebê?
- Eu volto a tempo, não se preocupe.
Gabriel voltou ao quarto e vinha arrastando um Jamal com a
cara toda amassada de quem tinha acabado de ser arrancado da cama. Não consegui
impedir a risada vendo ele olhar para a mala aberta na cama e minhas roupas
espalhadas, atordoado.
- O que está acontecendo aqui? Está de mudança?
- Rupert vai viajar. Vai passar um ano viajando pelo mundo e
você vai com ele.
- O que? – dissemos ao mesmo tempo.
- Jamal está sendo promovido, ele agora é seu assessor
particular. Durante esse seu ano fora, vou agendar alguns eventos que você
precisa comparecer. Já era hora de organizar uma turnê mundial e o lançamento
do Prisioneiro de Azkaban é a desculpa perfeita. Não me importa o roteiro que
pretende fazer, desde que esteja nas cidades agendadas na data certa.
- Ok, sem problemas. Vai ser divertido.
- E você precisa encontrar tempo para escrever o quarto
livro – assenti e ele olhou para Jamal – E o seu trabalho é manter ele na
linha. Fazer com que não perca nenhum dos eventos programados, escreva e fique
longe de confusão, entendeu?
- Mas eu estou fazendo faculdade! Papai não vai gostar
disso.
- Você vai trancar a faculdade por um ano. Sei pai sabe que
está no caminho certo agora, não vai se preocupar porque sabe que quando
voltar, vai se formar.
- Eu não posso nem opinar e dizer se quero ir ou não?
- Não, você vai. E vai receber um salário para isso, então é
bom fazer o trabalho direito. Se ele se meter em encrenca, você é quem leva a
culpa. Quero a imagem dele intacta, e se possível ainda melhor quando
voltarem.
- Ah Jam, vai ser divertido! Você e eu soltos pelo mundo. Nº
17 na minha Bucket List.
- Isso eu sei, mas é que acabei de acordar de ressaca e sou
informado que estou partindo em uma viagem ao redor do mundo com meu melhor
amigo e vou ser pago para isso. Desculpe se ainda estou um pouco confuso –
dessa vez todo mundo riu.
- Bom, tudo acertado então. Vocês não vão hoje, é claro,
ainda precisam de vistos e vacinas e eu preciso de um tempo para organizar uma
agenda, então pare de atirar roupas na mala.
- Quanto tempo?
- Me dê duas semanas, ok? Se programem para partir em quinze
dias.
Assenti animado e Gabriel saiu do quarto já com o celular na
orelha. Becky me abraçou outra vez e Jamal ainda parecia perdido, mas eu estava
mais do que ligado. Em duas semanas partira em uma viagem sem rumo ao redor do
mundo e só voltaria um ano depois. Eu não ia conseguir dormir pelos próximos
quinze dias.
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Jamal e eu viajamos por toda a Ásia, América do Sul, África
e Oceania durante esse ano fora, e também alguns países da Europa. Cumpri toda
a agenda imposta por Gabriel, terminei de escrever O Cálice de Fogo e comecei
um novo livro – esse em parceria com Jamal – contando a nossa aventura pelo
mundo. Visitei lugares incríveis que sequer sabia que existiam e conheci
pessoas mais incríveis ainda dos quais nunca vou esquecer. Dormi em estações de
trem, usei meios de transportes que deixariam apavorado qualquer pessoa com um
pouco mais de juízo e perdi as contas de quantas vezes passei mal por comer
algo suspeito. Ajudei a construir casas por uma ONG na África do Sul, ensinei inglês
para refugiados tibetanos e comecei minha própria instituição de caridade. Em
um ano me transformei em outra pessoa.