Posted: quarta-feira, 31 de julho de 2013 by Rupert A. F. Storm in
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Já haviam se passado cinco dias desde a morte de Otter e eu me sentia mais perdido do que nunca. Não conseguia focar no trabalho, ficar dentro de casa encarando a tela do laptop era enlouquecedor, eu não sabia o que fazer para me distrair e parar de pensar no que havia acontecido. E não queria pedir ajuda à família, estavam todos tão ou mais abalados que eu, não seria justo. Quando minha mãe morreu eu era criança, era normal apenas chorar, mas agora eu não sabia como reagir. Estava entre a depressão e o estado de choque.

Foi Jamal quem me tirou de dentro de casa. Vendo meu desespero em me afastar ao menos um pouco do que me cercava, me arrastou de dentro do loft para seu apartamento, apenas alguns quarteirões de distancia. Não que tivéssemos muito que fazer, estávamos deprimidos demais para bater papo, mas só de sair de casa senti-me um pouco melhor.

Jamal havia se tornado meu melhor amigo desde que nos formamos. Quando ele começou com essa história, ainda de brincadeira enquanto tentava me dar algumas dicas de como me soltar mais, não imaginava que ele ia mesmo se tornar a pessoa que estava sempre ali para o que fosse preciso. Foi ele quem me ajudou a me adaptar a morar sozinho e quem estava do meu lado quando Amber foi embora. E fui eu quem o convenceu a voltar ao plano de estudar direito. Um ano depois de formados e ele já estava de volta no trilho, para o alivio do tio Quim, e agora estagiava com Gabriel. Estava trabalhando como seu assistente.

- Preciso sair daqui – disse de repente, atirado em um dos sofás da casa dele.
- Quer ir pra onde? – ele respondeu atirado do outro.
- Sei lá. Queria poder sumir.
- Sumir não seria uma má idéia. Tem um papel caindo do seu bolso – ele falou e peguei, mas deixei um suspiro desanimado escapar quando vi o que era – O que é isso?
- Uma Bucket List – ele riu – Eu sei, é idiota. Fiz porque o Dr. Pace pediu, na época que estava fazendo terapia ainda na escola.
- Posso ver? – estiquei a mão e ele pegou o papel – Wow, tem muita coisa.
- A maioria é besteira – ri também – Poucas coisas são sérias.
- Ficar com ela? – ele leu o penúltimo item e dei de ombros – Ela é...
- Sim. Eu disse que a maioria era besteira. Esse ai já era.
- A vida é uma caixinha de surpresas, cara. Nunca se sabe o dia de amanhã.
- Onde leu isso? Na caixa de cereal? – e ele riu.
- Pra que você quer aprender Mandarim?
- Sei lá, talvez pelo mesmo motivo que quero dar um soco em um tubarão? – respondi e ele riu olhando para a lista.
- Ah, Nº 14. Esse talvez seja o último item que consiga realizar, então é melhor focar nos outros primeiro.
- Não se preocupe, não pretendo cumprir nada. Pode jogar fora depois de ler.
- Como assim? Mas você ainda não cortou nenhum item! – ele sentou no sofá – Ok, temos que consertar isso. Acho que aprendemos da maneira mais dura essa semana que a vida é curta. E se você tem 40 itens nessa lista, é melhor começar a riscar alguns.
- Jamal, sério, não estou no clima. Essa lista é idiota.
- Não é não. Você escreveu um monte de bobagens, realmente, mas algumas coisas são legais. Escrever uma peça, ter um dos seus livros transformado em um filme, ter filhos, viajar por um ano com seu melhor amigo. Quer saber? Como eu sou seu melhor amigo e quero viajar por um ano com você, não vou deixá-lo desistir da lista. Vamos riscar algo daqui agora mesmo. Que tal o Nº 10? – e me devolveu ao papel, levantando do sofá.
- Beber uma garrafa de tequila em 10 minutos? – li e balancei a cabeça – Jam, isso é uma péssima idéia.
- Cenoura, você precisa parar de pensar demais – ele voltou do bar com duas garrafas na mão – E não tem uma hora melhor para beber do que essa. Uma pra cada!

No começo resisti, mas Jamal tinha razão. Que melhor hora para encher a cara do quando se está deprimido? Ele abriu as garrafas, dispensamos os copos e dentro dos 10 minutos estipulados na minha Bucket List terminamos as tequilas. E é claro que ficamos completamente bêbados, o que nos animou um bocado e resultou em uma vontade súbita de ir para a rua.

Já era tarde da noite e caminhamos sem rumo pelas ruas, sem perceber que íamos em direção ao Hyde Park. Nós andamos muito. O parque estava vazio quando chegamos exceto por alguns guardas da policia montada que conversavam distraídos na esquina. Os cavalos estavam amarrados na grade, relativamente afastados dos policiais. Foi Jamal quem teve a idéia.

- Vamos roubar aqueles cavalos!
- O que? – mesmo bêbado sabia que aquilo era loucura – Ficou louco?
- Mas está na lista! – ele argumentou – Nº 15: Roubar um cavalo da Policia Montada.
- Ah sim, então tudo bem! – aparentemente, minha sanidade era temporária.

E nós fomos. Desamarramos dois cavalos, montamos, cavalgamos por cerca de um quarteirão e fomos apanhados pelos policiais que não tiveram a montaria seqüestrada. É claro que fomos presos e acabei riscando o terceiro item da minha lista. Nº 18: Ser preso por algo maneiro.

Jamal e eu não parávamos de rir enquanto éramos levados pela viatura que eles chamaram até a delegacia mais próxima. Fomos colocados em uma cela com um homem que roncava alto no banco e ainda assim não conseguíamos parar de rir. Estávamos bêbados, ora, o que mais esperar?

Gabriel foi nos tirar de lá não muito tempo depois. Em meio às risadas, lembro-me do olhar furioso dele enquanto nos arrastava para fora da delegacia pela porta dos fundos e nos levava de volta ao meu loft. Minha última lembrança da noite foi dele me atirando na cama de sapato e tudo e batendo a porta.

°°°°°°°°

Acordei com uma dor de cabeça de outro mundo na manhã seguinte e, infelizmente, lembrava de tudo que havia feito. Gabriel ainda estava no loft e continuava enfezado quando apareci na sala. E para minha surpresa, Becky estava com ele. Ótimo, eles iam se juntar para fazer uma intervenção?

- Está feliz? – ele perguntou irritado e piorou quando dei de ombros – Eu vou bater nele.
- Calma, Biel! – Becky falou menos irritada, mas também não estava alegre – Rup, você tem idéia do que fez ontem?
- Sim, eu roubei um cavalo da guarda montada. Não estou orgulhoso disso.  Não, na verdade, estou orgulhoso sim – e ri, o que só fez Gabriel ficar ainda mais louco.
- Você está rindo? – ele basicamente gritou e me assustei um pouco – Rupert, você não é mais o adolescente anônimo que deixava McGonagall enlouquecida com o resto da turma porque aprontava. Você agora é uma pessoa publica! Você foi preso!
- Desculpa! Estávamos bêbados, não pensamos.
- Esse é o problema, você precisa pensar antes de fazer as coisas!
- Mas eu sempre penso, Jamal disse que eu precisava parar de pensar!
- Jamal é outro desmiolado e você não tem que dar ouvidos a ele!
- Você o contratou como seu assistente. Por que fez isso se acha ele um desmiolado?
- Por que sei que tem potencial, mas não quando está bêbado!
- Parem de gritar vocês dois! – Becky gritou também.
- Olha Gabriel, eu sinto muito, isso não vai mais se repetir. Foi estupidez, eu sei, mas está tudo bem.
- Ele não faz idéia, Biel. Explique com calma, por favor – Becky pediu e Gabriel suspirou, sentando no sofá.
- Ontem quando fui buscar vocês na delegacia, enquanto pagava fiança encontrei um repórter de tablóide. Ele sabia que você estava lá, alguém contou, mas precisava de uma foto para provar. Precisei da colaboração do policial responsável, que por sua sorte é muito fã dos seus livros, para não divulgar nada. E ele nos deixou sair pelos fundos, então ele não nos viu.
- Maninho, se ele tivesse tirado uma foto sua saindo da delegacia, você tem idéia do impacto que isso teria na sua imagem? Você é uma espécie de modelo para crianças.
- Mas eu nunca pedi isso, não quero ser modelo de ninguém!
- Mas você é, então é melhor se acostumar e começar a tomar decisões melhores.
- Não agüento mais isso! Vocês me pressionando, a editora me pressionando, eu não consigo me concentrar! Amber foi embora, Otter morreu e vocês querem que eu sirva de exemplo pra crianças? Meu primo morreu! Ele explodiu! Não tinha nem um corpo inteiro para enterrar! Eu não preciso de ninguém me amolando agora!
- Otter também era nosso primo, nós entendemos, mas isso não é motivo pra jogar fora todo o trabalho que fez até agora!
- Não, vocês não entendem, ninguém entende!

Voltei para o quarto furioso e abri o armário, pegando uma mala e começando a atirar peças de roupa dentro. Os dois entraram logo depois, mas os ignorei e continuei a encher a mala de roupas.

- O que está fazendo?
- Juntando tudo que preciso para passar um tempo fora.
- Quanto tempo? Para onde vai?
- Não sei, parem de fazer perguntas! Só quero desaparecer daqui!
- Pare com isso agora, você não vai a lugar algum! – Gabriel disse autoritário e o encarei.
- Você é meu assessor, não o meu dono. Não pode me dizer o que fazer!
- Posso se isso vai afetar o seu futuro!
- Parem com isso! – Becky disse histérica – Parem de brigar, por favor! Rup, se acalme, você não precisa ir embora.
- Preciso sim, eu não quero mais ficar aqui. Só quero um tempo longe, só isso – olhei para Gabriel cansado – Não vou quebrar o contrato, sei que tenho um compromisso com a editora e vou terminar os livros, quero terminar eles. Só o que estou pedindo é um tempo para esfriar a cabeça. E quero fazer isso longe daqui.
- Quanto tempo quer ficar longe? – ele perguntou mais calmo.
- Um ano – arrisquei, embora achasse que ele fosse vetar de cara.

Gabriel não disse nada, mas vi que ele estava considerando. Ele entendia o que eu estava pedindo. Ele também, quando era mais novo, precisou de um tempo longe de tudo que era familiar. Ele também saiu pelo mundo sem rumo, justamente para encontrar um. Ele fez algumas ligações, conferiu outras coisas no celular e enfim me encarou, já sem o semblante irritado de antes.

- Ok, não vou impedir que viaje, mas vou precisar impor algumas condições.
- Tudo bem, peça o que quiser – não acreditei quando ele topou.
- Só um minuto, preciso de mais uma coisa antes de explicar – e saiu do quarto.
- Vai mesmo embora? – Becky sentou na cama com um olhar triste.
- Não estou indo de vez, só quero ficar um pouco longe. Encontrar meu caminho.
- Então tem algo que preciso lhe contar que ninguém sabe ainda, nem mesmo Connor – ela pegou minha mão e a levou até sua barriga – Você vai ser titio.
- Você está grávida? – perguntei abrindo um sorriso enorme, o primeiro em dias, e a abracei – Ah Becky, que noticia maravilhosa!
- Descobri ontem, mas não consegui encontrar um meio de contar a ninguém, com todos tão deprimidos.
- Mas é por isso mesmo que você precisa contar. Estão todos sem esperança de nada, a notícia de que está esperando um bebê é a injeção de animo que a família precisa.
- Tem razão, vou contar ao Connor hoje e depois aos outros. Papai vai ficar louco.
- Merlin, ele vai ser vovô. Vai se sentir velho.
- Ai maninho, vou sentir saudades – ela me abraçou com os olhos cheios de lagrima – Um ano é muito tempo.
- Passa rápido. E prometo manter contato sempre, quero acompanhar você ficando gigante mesmo de longe – e ela me deu um soco no braço.
- Promete que vai estar aqui para o primeiro natal do bebê?
- Eu volto a tempo, não se preocupe.

Gabriel voltou ao quarto e vinha arrastando um Jamal com a cara toda amassada de quem tinha acabado de ser arrancado da cama. Não consegui impedir a risada vendo ele olhar para a mala aberta na cama e minhas roupas espalhadas, atordoado.

- O que está acontecendo aqui? Está de mudança?
- Rupert vai viajar. Vai passar um ano viajando pelo mundo e você vai com ele.
- O que? – dissemos ao mesmo tempo.
- Jamal está sendo promovido, ele agora é seu assessor particular. Durante esse seu ano fora, vou agendar alguns eventos que você precisa comparecer. Já era hora de organizar uma turnê mundial e o lançamento do Prisioneiro de Azkaban é a desculpa perfeita. Não me importa o roteiro que pretende fazer, desde que esteja nas cidades agendadas na data certa.
- Ok, sem problemas. Vai ser divertido.
- E você precisa encontrar tempo para escrever o quarto livro – assenti e ele olhou para Jamal – E o seu trabalho é manter ele na linha. Fazer com que não perca nenhum dos eventos programados, escreva e fique longe de confusão, entendeu?
- Mas eu estou fazendo faculdade! Papai não vai gostar disso.
- Você vai trancar a faculdade por um ano. Sei pai sabe que está no caminho certo agora, não vai se preocupar porque sabe que quando voltar, vai se formar.
- Eu não posso nem opinar e dizer se quero ir ou não?
- Não, você vai. E vai receber um salário para isso, então é bom fazer o trabalho direito. Se ele se meter em encrenca, você é quem leva a culpa. Quero a imagem dele intacta, e se possível ainda melhor quando voltarem.
- Ah Jam, vai ser divertido! Você e eu soltos pelo mundo. Nº 17 na minha Bucket List.
- Isso eu sei, mas é que acabei de acordar de ressaca e sou informado que estou partindo em uma viagem ao redor do mundo com meu melhor amigo e vou ser pago para isso. Desculpe se ainda estou um pouco confuso – dessa vez todo mundo riu.
- Bom, tudo acertado então. Vocês não vão hoje, é claro, ainda precisam de vistos e vacinas e eu preciso de um tempo para organizar uma agenda, então pare de atirar roupas na mala.
- Quanto tempo?
- Me dê duas semanas, ok? Se programem para partir em quinze dias.

Assenti animado e Gabriel saiu do quarto já com o celular na orelha. Becky me abraçou outra vez e Jamal ainda parecia perdido, mas eu estava mais do que ligado. Em duas semanas partira em uma viagem sem rumo ao redor do mundo e só voltaria um ano depois. Eu não ia conseguir dormir pelos próximos quinze dias.

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Jamal e eu viajamos por toda a Ásia, América do Sul, África e Oceania durante esse ano fora, e também alguns países da Europa. Cumpri toda a agenda imposta por Gabriel, terminei de escrever O Cálice de Fogo e comecei um novo livro – esse em parceria com Jamal – contando a nossa aventura pelo mundo. Visitei lugares incríveis que sequer sabia que existiam e conheci pessoas mais incríveis ainda dos quais nunca vou esquecer. Dormi em estações de trem, usei meios de transportes que deixariam apavorado qualquer pessoa com um pouco mais de juízo e perdi as contas de quantas vezes passei mal por comer algo suspeito. Ajudei a construir casas por uma ONG na África do Sul, ensinei inglês para refugiados tibetanos e comecei minha própria instituição de caridade. Em um ano me transformei em outra pessoa.

Foi uma experiência inesquecível. Não foi o Rupert que voltou para Londres em dezembro de 2020, foi alguém completamente novo. E quando desembarquei, Becky estava me esperando no aeroporto com Henry Liam, meu sobrinho de oito meses, no colo. Parti quando a família perdeu um membro e voltei quando ela ganhou um novo. Aquele era um novo começo.