Posted: quinta-feira, 4 de outubro de 2012 by Rupert A. F. Storm in
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A sala de espera do consultório já estava vazia quando cheguei, como toda semana. Preferia o último horário. Ficar com outras pessoas na sala e ter que interagir, ser questionado dos motivos de estar ali, não era algo que me agradava. A recepcionista sorriu e abriu a porta do consultório.


- Pode entrar, ele já está lhe esperando.
- Obrigado.

Dr. Pace estava finalizando as anotações do último paciente quando entrei. Ele acenou com a cabeça e gesticulou para que me acomodasse. Uma vez a cada semana ele dedicava o dia inteiro aos ex-alunos de Hogwarts que queriam continuar com a terapia e eu era um deles. É verdade que havia melhorado bastante desde que comecei a conversar com ele, ainda na escola, mas ainda estava longe de me sentir bem o suficiente para encerrar as sessões.

- Pronto, desculpe por isso – ele finalmente fechou a ficha e sorriu – Tudo bom?
- Sim, tudo bem – respondi assentindo – As coisas estão indo bem.
- Como está sendo morar sozinho?
- Ótimo. Está sendo ótimo. Justin é organizado, está tudo sempre no lugar. É um pouco obcecado com limpeza, mas acho que é porque está estagiando no hospital e tudo precisa estar sempre muito limpo. Outro dia brigou comigo porque coloquei um copo em cima do vidro sem o apoio. Não que eu esteja reclamando! – e ele riu.
- E o estágio que quer fazer? Departamento de Parques e Recreação, certo? – assenti e ele fez uma anotação na prancheta – Tem mesmo certeza que quer isso? Você já tem um emprego, Rupert.
- Não parece um emprego ainda. Preciso ter um lugar para ir todo dia, uma rotina. Não estou acostumado a ficar em casa à toa.
- Mas você não vai estar à toa, tem livros à sua espera. Relatos a ouvir das pessoas envolvidas, páginas e mais páginas para escrever.
- Eu consigo fazer isso e ainda ter um trabalho. Pelo menos até me acostumar. Se achar que não estou conseguindo me dedicar como devo aos livros, saio do estágio. Mas quero ficar nele até onde puder.
- Muito bem, vou acompanhar de perto. Se achar que está ficando sobrecarregado, meu primeiro conselho será deixar o estágio.
- E eu vou seguir seu conselho, prometo.
- Certo. E como vão as coisas com Amber? Ela já voltou da Califórnia?
- Não. Cancelaram o voo dela por causa dessa tempestade insana que tomou conta de Londres. Era para ela ter chegado hoje de manhã, mas agora não sei quando ela chega – disse sem conseguir esconder minha insatisfação.
- Você parece chateado. Imagino que também tenha sentido a falta dela.
- É, sinto falta dela e eu estou chateado. Sinto falta de dividir com ela todas essas mudanças. Falamos por telefone todos os dias, ela sabe o que estava acontecendo, mas não é a mesma coisa de ter ela aqui, do meu lado.
- Por que essa ansiedade toda?
- A noite de autógrafos é amanhã – disse como se fosse óbvio, mas ele continuou esperando a explicação – Preciso dela ao meu lado. Não sei se consigo sem ela.
- E por que acha isso?
- Porque ela é minha melhor amiga, é quem eu procuro quando não estou bem, é quem sabe e entende tudo que passei e ainda passo. Sem o apoio dela, não vou sobreviver a um evento fechado com centenas de pessoas onde o centro das atenções sou eu. Patético, eu sei, mas preciso dela aqui, me reafirmando que tudo vai ficar bem.
- De forma alguma isso é patético. Todos nós temos uma pessoa em quem confiamos e procuramos conforto, alguém que nos transmite segurança. Amber é essa pessoa para você e eu sei que você é essa pessoa para ela.
- Estou nervoso. Não sei como agir amanhã.
- Relaxe, porque vai dar tudo certo. Tudo que precisa fazer é sorrir e autografar os livros.
- Mas o que eu digo a essas pessoas? Sou péssimo conversando com alguém pela primeira vez. Preciso de um tempo para me sentir a vontade.
- Não vai ter tempo de conversar com as pessoas na fila, vai ser tudo muito rápido.
- Nunca achei que o livro fosse fazer esse sucesso todo, não me preparei para isso.
- É bom começar a se acostumar, esse é só a primeira de muitas noites de autógrafos – ele sorriu parecendo orgulhoso – A noite de amanhã marca o inicio de uma nova fase em sua vida. Você vai muito longe, Rupert.

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A livraria estava lotada. Podia dizer isso sem nem precisar sair do conforto e da segurança do escritório onde aguardava Gabriel vir me buscar pelo barulho que vinha de debaixo da porta. Estava sozinho encarando a porta fechada, aflito e ansioso. Amber ainda não havia chegado à Londres, a tempestade não dava trégua e todas as decolagens e aterrisagens continuavam suspensas. Com sorte, o novo voo só pousaria na noite seguinte, ela ia perder o evento.  Teria que sobreviver à tarde sozinho e aquilo estava me deixando em pânico.

Sentia-me um idiota por estar me sentindo tão vulnerável e inseguro como nunca fui antes, nem mesmo quando era alvo dos valentões da escola, mas não havia nada que pudesse fazer de imediato. Não havia sido fácil no começo, mas havia finalmente aceitado que Dr. Pace estava certo e apenas o tempo me livraria de vez de todas as cicatrizes. Tudo ia ficar bem, apenas não hoje.

Becky apareceu para ver como eu estava, mas a convenci que estava tudo bem e ela me deixou sozinho outra vez. Não estava com vontade de conversar, não quando estava tão nervoso. Olhei para o relógio na parede e minhas mãos começaram a suar, faltava apenas cinco minutos. Alguém bateu na porta outra vez e a cabeça de Gabriel apareceu.

- Como está?
- Quase vomitando.
- Não vomite.  – assenti respirando fundo e ele riu – Tem alguém aqui querendo falar com você, talvez ajude.
- Não quero ver ninguém, não agora.
- Quer reconsiderar isso? – ele perguntou rindo outra vez e abriu mais a porta.

Amber estava parada ao seu lado, a mochila enorme que havia levado para a Califórnia ainda em suas costas. Gabriel sorriu e assim que fechou a porta, correu e se atirou em meus braços. Ela enterrou o rosto eu meu ombro e só de estar tocando nela foi como se todo o peso que estava sentindo tivesse desaparecido. Tudo parecia mais fácil agora.

- Senti tanto a sua falta – ela acariciou meu rosto e me beijou.
- Senti muito a sua falta também – segurei suas mãos e as mantive em meu rosto – Como chegou aqui? Pensei que estava voando agora.
- Não ia ficar lá em uma data tão importante para você. Briguei com a Cia aérea e consegui uma vaga em um voo para Paris, mas isso já era de madrugada, não pude ligar para avisar que estava a caminho. E quando cheguei a Paris hoje pela manhã, meu celular estava totalmente descarregado e não sei nenhum numero de cabeça, não tinha como ligar. Depois de duas horas no aeroporto sem conseguir um voo que me trouxesse para casa, desisti e peguei o trem.
- Uau, que peregrinação – disse surpreso, mas sorri – Obrigado.
- Sempre – ela apoiou as mãos em meu pescoço e aproveitei minhas mãos livres para puxá-la pela cintura para mais perto – Como está se sentindo?
- Agora estou bem, mas não viaje por dois meses outra vez, ok? – ela riu e me beijou.
- Nunca mais.
- Está na hora – Gabriel bateu outra vez e entrou no escritório – Pronto?
- Sim, vamos acabar logo com isso.
- Não diga isso para a imprensa, ok? – ele bateu nas minhas costas rindo – Não vai pegar bem.
- Certo.
- E lembre-se: basta sorrir, perguntar seus nomes, apertar mãos, assinar os livros e agradecer por terem vindo.
- Sorrir, nomes, apertar, assinar, agradecer – repeti feito um robô e ouvi a risada de Amber atrás de mim, apertando minha mão.
- Você vai se sair bem, não se preocupe – ela beijou minha bochecha e nossos dedos se soltaram – Vou procurar Kaley e o resto do pessoal, nos vemos quando acabar, ok?

Assenti com a cabeça e Gabriel me guiou para o lado oposto, para onde a mesa com a pilha de livros estava montada. Uma fila enorme se formava diante dela e quando me viram, uma gritaria sem tamanho tomou conta da livraria. Fiquei momentaneamente cego com os flashes que saiam das máquinas fotográficas da área onde a imprensa estava e quando consegui enxergar outra vez pude ver com mais atenção às pessoas na fila. Eram adultos, homens e mulheres, velhos e novos, muitas crianças também, não tinha uma faixa etária definida, tampouco um estilo único de público. Não sei ao certo o que eu esperava encontrar, mas certamente não imaginava que havia atingido a um público tão diversificado assim.

O esquema era simples, como Gabriel havia prometido. A pessoa chegava à mesa, eu apertava sua mão, perguntava seu nome, pegava um livro da pilha, o autografava e entregava a ela agradecendo por ter vindo e a pessoa ia até o caixa pagar pelo livro. Não sei dizer quantos livros autografei. Sempre que a pilha diminuía, uma nova surgia em seu lugar. Se estivéssemos na Floreios & Borrões saberia que a mesa estava encantada para se encher sozinha, mas era uma livraria trouxa. A mágica aqui eram inúmeras caixas com estoques do livro empilhadas na parte de trás que um funcionário reorganizava na mesa conforme ela ia esvaziando.

Depois de algum tempo meus amigos surgiram na fila querendo um autógrafo também, Amber entre eles e até mesmo Dr. Pace. Todos já tinham lido o livro e tinham suas cópias em casa, mas fizeram questão de esperar na fila como todo mundo e comprar um novo para me apoiar. Não cheguei a ter tempo de dizer, ali, o quanto aquilo significava para mim, mas eles sabiam. Minhas mãos já estavam doendo e minha letra deteriorando de tanto escrever meu nome, em alguns momentos acho que não cheguei a escrever Rupert Storm nos livros, saiu mais um borrão – talvez deva aprimorá-lo para ser meu autógrafo oficial – quando a fila finalmente chegou ao fim. A última pessoa dela era um garotinho de no máximo sete anos acompanhado do que só poderia ser seu pai, dada à semelhança.

- Olá – estendi a mão e o menino apertou com entusiasmo – Como se chama?
- Dashiell – ele disse orgulhoso e ri.
- Uau, nome bonito.
- É em homenagem ao Dashiell Hammett – ele explicou e tentei não rir.
- É mesmo? – fingi já não ter deduzido e ele pareceu feliz por poder me esclarecer isso – Gostei. Acho que vou batizar meu primeiro filho de Dashiell também.
- Você também gosta de livros de detetive?
- Sim, adoro, são os meus favoritos! – entreguei o livro a ele – Você vai ver quando meus próximos livros saírem, a história fica cada vez mais intrigante.
- Legal – ele mostrou o autografo para o pai e olhou de volta para mim – Prazer em conhecê-lo, Sr. Storm. O seu livro é muito, muito legal.
- Obrigado, e pode me chamar de Rupert.
- E você pode me chamar de Dash.
- Ok Dash, vou me lembrar disso na próxima vez que nos encontrarmos.

O pai apertou minha mão agradecendo e os dois saíram em direção ao caixa, o menino sem conseguir conter a empolgação. Gabriel me autorizou a levantar e fez sinal para que o seguisse, não deixando que eu fosse de encontro aos meus amigos. Desde que havia tido a ideia, e o apoio, para escrever o livro, por ser formado em jornalismo meu padrinho havia assumido o cargo de meu assessor. Era ele quem cuidava de tudo relacionado aos livros, meu único trabalho era escrevê-los e fazer o que ele mandava, desde reuniões na editora a assuntos relacionados à publicidade deles. E Gabriel nunca foi bom em disfarçar as coisas, então quando percebi que ele estava cauteloso, soube imediatamente que ia me dar uma noticia que não ia gostar muito.

- O que houve? – perguntei o segurando pelo braço impedindo que continuasse andando.
- Tem mais uma coisa que preciso que faça.
- Você disse que era só autografar os livros.
- Eu sei, mas tem mais uma coisa. Não quis dizer nada antes porque sabia que ia dizer não, e não é como se você tivesse escolha.
- O que não tenho escolha? – já estava começando a entrar em pânico.
- Calma, ok? Não é nenhum bicho de sete cabeças – ele apertou meu ombro – Você precisa fazer uma leitura do livro. Não é muita gente, é para um público pequeno.
- Leitura do livro? Quer que eu leia o livro inteiro em voz alta aqui?
- Não, só o primeiro capítulo, e são apenas algumas pessoas que fizeram a inscrição mais cedo. É fechado, nem mesmo nossa família vai participar, só mesmo quem se inscreveu para as 20 vagas que a livraria abriu. A maioria são crianças.
- Crianças podem ser intimidadoras.
- Rupert, preciso que você respire fundo e supere isso. Você é famoso agora, essa vai ser apenas a primeira de muitas leituras que fará em sua carreira. Se não pode enfrentar 20 crianças, como vai ser quando estiver em um auditório lotado de adultos querendo fazer perguntas a um dos mais jovens escritores da Inglaterra?
- Você não está ajudando! – minha voz saiu um pouco mais esganiçada do que eu gostaria, mas foi involuntário.
- O que houve? – ouvi a voz de Amber e senti sua mão apertando a minha – Você está pálido.
- Contei a ele que precisa ler o primeiro capítulo do livro para 20 pessoas daqui a pouco.
- E qual é o problema? – ela perguntou sem entender meu nervosismo.
- Eu não consigo falar em público! Não importa se são só 20 pessoas e a maioria é criança, eu travo.
- Rup, não é tão complicado assim – Amber falou com uma voz calma, entrelaçando seus dedos com os meus – É como ler sozinho em casa, só que precisa fazer isso em voz alta.
- Exatamente. Não pense que está diante de um público, se imagine sozinho em casa ou rodeado de amigos.
- Não sei se posso fazer isso.
- Você pode sim – Amber disse firme e olhei para ela – Achava que não ia conseguir passar pelos autógrafos e se saiu bem, estava até a vontade. Não tem nada que você não possa fazer.
- Que horas tenho que fazer isso? – perguntei a Gabriel e ele consultou o relógio no pulso.
- Agora. Vamos?
- Ela pode ficar lá também?
- Sim, ela fica comigo na mesa.

Assenti outra vez, sem opção, e o segui até o segundo andar da livraria onde a leitura seria. Era uma área mais afastada e estava toda cercada, realmente seria um evento fechado. As 20 pessoas que se inscreveram estavam sentadas em almofadas no chão e a maioria eram mesmo crianças, então seus pais estavam acompanhando, o que fazia o numero de pessoas aumentar um pouco, mas tentei relaxar. Gabriel me guiou até um pedestal de madeira que haviam montado igual aos que montam para discursos e o livro já estava em cima dele.

Amber soltou minha mão e seguiu Gabriel até a lateral da sala, de onde eles assistiriam a leitura, e fiquei sozinho diante daquelas quase 30 pessoas me encarando. Aquilo não era como ler em casa. Não estava nem mesmo confortável. Encarei as pessoas outra vez e vi Dashiell e seu pai no fundo da sala. Ele acenou animado e acenei de volta, sorrindo. Não sei exatamente o que me deu, mas tapei o microfone com a mão e olhei para Gabriel.

- Você pode me arrumar uma dessas almofadas? – ele fez uma cara confusa, mas assentiu e saiu.
- Desculpa, pessoal, prometo já começar – falei no microfone de repente não me sentindo mais tão tenso – Isso é novidade para mim, não estou acostumado a ser o centro das atenções e isso me deixa um pouco nervoso – algumas pessoas riram e relaxei um pouco mais – Quando me contaram sobre essa leitura, cinco minutos atrás, me disseram que era como ler sozinho em casa, só que em voz alta. Não sei vocês, mas eu não leio em casa arrumado desse jeito e em pé em um pedestal – todos riram agora e Gabriel apareceu com a almofada – Ah, obrigado.

Coloquei a almofada no chão encostada na parede, deixei o microfone em cima dela, coloquei o livro no chão e tirei os sapatos, pegando o microfone de volta e sentando com as costas grudadas na almofada. As crianças começaram a rir e as incentivei a tirarem os sapatos também, o que foi prontamente atendido.

- Ok, agora está mais parecido com ler em casa. Vamos começar?

Abri o livro em meu colo e quando li o primeiro parágrafo, percebi que aquilo era mesmo muito fácil. De relance vi Gabriel e Amber sorrindo satisfeitos, mas não olhei para eles para não perder a concentração. A cada linha ficava mais fácil e quando o capítulo chegou ao fim, queria ter podido continuar e ler o livro inteiro. Quando o fechei e olhei para as pessoas na sala, todas tão envolvidas na história que havia começado a contar... Foi naquele momento que finalmente percebi eu poderia tentar todas as carreiras existentes que nenhuma daria certo. Eu havia nascido para ser um escritor.